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terça-feira, 7 de agosto de 2012

Quem são os pais do amor? - diálogo entre Sócrates & Diotima


Diotima – Tudo o que é gênio está entre um deus e um mortal. (...) E esses gênios, é certo, são muitos e diversos, e um deles é justamente o Amor.
Sócrates – E quem é seu pai – perguntei-lhe – e sua mãe?
Diotima – É um tanto longo de explicar, disse ela; todavia, eu te direi. Quando nasceu Afrodite, banqueteavam-se os deuses, e entre os demais se encontrava também o filho de Prudência, Recurso. Depois que acabaram de jantar, veio para esmolar do festim a Pobreza, e ficou pela porta. Ora, Recurso, embriagado com o néctar – pois vinho ainda não havia – penetrou o jardim de Zeus e, pesado, adormeceu. Pobreza então, tramando em sua falta de recurso engendrar um filho de Recurso, deita-se ao seu lado e pronto concebe o Amor. Eis por que ficou companheiro e servo de Afrodite o Amor, gerado em seu natalício, ao mesmo tempo em que por natureza amante do belo, porque também Afrodite é bela. E por ser filho o Amor de Recurso e de Pobreza foi esta a condição em que ele ficou. Primeiramente ele é sempre pobre, e longe está de ser delicado e belo, como a maioria imagina, mas é duro, seco, descalço e sem lar, sempre por terra e sem forro, deitando-se ao desabrigo, às portas e nos caminhos, porque tem a natureza da mãe, sempre convivendo com a precisão. Segundo o pai, porém, ele é insidioso com o que é belo e bom, e corajoso, decidido e enérgico, caçador terrível, sempre a tecer maquinações, ávido de sabedoria e cheio de recursos, a filosofar por toda a vida, terrível mago, feiticeiro, sofista: e nem imortal é a sua natureza nem mortal, e no mesmo dia ora ele germina e vive, quando enriquece; ora morre e de novo ressuscita, graças à natureza do pai; e o que consegue sempre lhe escapa, de modo que nem empobrece o Amor nem enriquece, assim como também está no meio da sabedoria e da ignorância. Eis, com efeito, o que se dá. Nenhum deus filosofa ou deseja ser sábio – pois já é –, assim como se alguém mais é sábio, não filosofa. Nem também os ignorantes filosofam ou desejam ser sábios; pois é nisso mesmo que está o difícil da ignorância, no pensar, quem não é um homem distinto e gentil, nem inteligente, que lhe basta assim. Não deseja, portanto, quem não imagina ser deficiente naquilo que não pensa lhe ser preciso.
Sócrates – Quais então, Diotima – perguntei-lhe –, os que filosofam, se não são nem os sábios nem os ignorantes?
Diotima – É o que é evidente desde já – respondeu-me – até a uma criança: são os que estão entre esses dois extremos, e um deles seria o Amor. Com efeito, uma das coisas mais belas é a sabedoria, e o Amor é amor pelo belo, de modo que é forçoso o Amor ser filósofo e, sendo filósofo, estar entre o sábio e o ignorante. E a causa dessa sua condição é a sua origem: pois é filho de um pai sábio e rico e de uma mãe que não é sábia, e pobre. É essa então, ó Sócrates, a natureza desse gênio; quanto ao que pensaste ser o Amor, não é nada de espantar o que tiveste. Pois pensaste, ao que me parece a tirar pelo que dizes, que Amor era o amado e não o amante; eis por que, segundo penso, parecia-te todo belo o Amor. E, de fato, o que é amável é que é realmente belo, delicado, perfeito e bem-aventurado; o amante, porém, é outro o seu caráter, tal qual eu expliquei.

(In. Platão. O Banquete, 201 d-204 c. Disponível em www.dominiopublico.gov.br. Tradução: José Cavalcante de Souza).

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

O autor como produtor - Walter Benjamin

"Nem sempre houve romances no passado, e eles não precisarão existir sempre, o mesmo ocorrendo com as tragédias e as grandes epopéias. Nem sempre as formas do comentário, da tradução e mesmo da chamada falsificação tiveram um caráter literário marginal: eles ocuparam um lugar importante na Arábia e na China, não somente nos textos filosóficos como literários. Nem sempre a retórica foi uma forma insignificante: ela imprimiu seu selo em grandes províncias da literatura antiga. Lembro tudo isso para transmitir-vos a idéia de que estamos no centro de um grande processo de fusão  de formas literárias..." - (p.123-4).
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"A tendência política, por mais revolucionária que pareça, está condenada a funcionar de modo contra-revolucionário enquanto o escritor permanecer solidário com o proletariado somente ao nível de suas convicções, e não na qualidade de produtor" - (p.126);
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"...o lugar do intelectual na luta de classes só pode ser determinado, ou escolhido, em função de sua posição no processo produtivo" - (p.127).
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"Sabemos, e isso foi abundantemente demonstrado nos últimos dez anos, na Alemnanha, que o aparelho burguês pode assimilar uma surpreendente quantidade de temas revolucionários, e até de propagá-los, sem colocar seriamente em risco sua própria existência e a existência das classes que controlam. Isso continuará sendo verdade enquanto este aparelho for abastecido por escritores rotineiros, ainda que socialistas. Defino o escritor rotineiro como o homem que renuncia por princípio a modificar o aparelho produtivo a fim de romper sua ligação com a classe dominante, em benefício do socialismo. Afirmo ainda que uma parcela substancial da literatura de esquerda não exerceu outra função social que a de extrair da situação política novos efeitos, para entreter o público. Isso me traz ao tema da "Nova Objetividade". Ela lançou a moda da reportagem. A questão é a seguinte: a quem serviu esta técnica?" - (p.128).
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"...a proletarização do intelectual quase nunca faz dele um proletário. Por que? Porque a classe burguesa pôs a sua disposição, sob a forma da educação, um meio de produção que o torna solidário com esta classe e, mais ainda, que torna esta classe solidária com ele devido ao privilégio educacional (...). No escritor, a traição consiste num comportamento que o transforma de fornecedor do aparelho de produção intelectual em engenheiro que vê sua tarefa na adaptação desse aparelho aos fins da revolução proletária (...). A inteligência que fala em nome do fascismo deve desaparecer (...). Porque a luta revolucionária não se trava entre o capitalismo e a inteligência, mas entre o capitalismo e o proletariado" - (p.135-6).

Conferência pronunciada no Instituto para o Estudo do fascismo, em 27/4/1934.
(Walter Benjamin – Obras escolhidas. Vol. 1. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Prefácio de Jeanne Marie Gagnebin. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 120-36). 

domingo, 5 de agosto de 2012


"...a perda da aura, a famosa “desauratização”, é um fenômeno que não pode ser reduzido a uma transformação do estatuto contemporâneo da arte. É um fenômeno estético no sentido etimológico amplo de uma transformação da percepção humana, isto é, da percepção do mundo, do(s) outro(s) e de si mesmo. O poeta não é mais o mensageiro dos deuses, mas um produtor de mercadorias (poéticas!). Eros não é mais daimôn (o intermediário, o “demônio” no sentido grego do termo) que estabelece uma ponte entre a vida amorosa e sexual e a veneração da beleza divina transcendente. Parece ter sido encerrado numa fixação narcisista que a ideologia individualista da competitividade e do consumo exacerba. Contra essa “dessublimação repressiva” (Marcuse) a luta só pode ser política e, conjuntamente, estética: não reinventar uma transcendência soberana e distante, mas desconstruir a aparência lisa e comportada do real para nele abrir rachaduras e fissuras que permitem vislumbrar um “longínquo” tão desconhecido como imanente. Somente então poderá Eros ser novamente um verdadeiro demônio” .

(Jeane Marie Gagnebin em: "A questão de Eros na obra de Benjamin. Disponível em: http://www.raf.ifac.ufop.br/pdf/artefilosofia_04/artefilosofia_04_02_eros_filosofia_01_jeanne_marie_gagnebin.pdf).

Uma carta de amor de Walter Benjamin

Walter Benjamin conheceu Anna Maria  Blaupot ten Cate em maio de 1933, em Berlin, durante a queima de livros pelos nazistas. Tendo reencontrado a amada durante o exílio em Ibiza, Benjamin escreve, aproximadamente em 6/8/33:
"...Você é o que eu jamais poderia amar numa mulher: você ... é muito mais. Das suas feições surge tudo o que a torna de mulher a guardiã (Hüterin), de mãe a puta (Hure).
Você transforma uma em outra e a cada uma confere mil formas. Em seus braços o destino pararia para sempre de me encontrar. Sem susto e sem nenhum risco, ele poderia deixar de me surpreender.
O silêncio profundo que paira em torno de você indica o quão distante você está daquilo que te preocupa. Nesse silêncio acontece a mudança das figuras: seu interior. Elas jogam uma nas outras como as ondas: puta e sibila, ampliando mil vezes.”
(Fonte: citado por Carla Milani Damião no artigo: Pequena incursão sobre imagens femininas nos escritos benjaminianos. Disponível em: http://www.raf.ifac.ufop.br/pdf/artefilosofia_04/artefilosofia_04_02_eros_filosofia_03_carla_milani_damiao.pdf).  

sábado, 4 de agosto de 2012

Antigone - Sophocles (trechos)

Ismênia & Antígona (Emil Teschendorff).
Ismênia: Queres tu, realmente, sepultá-lo, embora isso tenha sido vedado a toda a cidade?
Antígone: Uma coisa é certa: Polinice era meu irmão, e teu também, embora recuses o que eu te peço. Não poderei ser acusada de traição para com o meu dever.
Ismênia:Infeliz! Apesar da proibição de Creonte?
Antígone: Ele não tem o direito de me coagir a abandonar os meus!
Ismênia: Ai de nós! Pensa, minha irmã, em nosso pai, como morreu esmagado pelo ódio e pelo opróbrio, quando, inteirado dos crimes que praticara, arrancou os olhos com as próprias mãos! E também em sua mãe e esposa, visto que foi ambas as coisas, que pôs termo a seus dias com um forte laço! Em terceiro lugar, em nossos irmãos, no mesmo dia perecendo ambos, desgraçados, dando-se à morte reciprocamente! E agora, que estamos a sós, pensa na morte ainda mais terrível que teremos se contrariarmos o decreto e o poder de nossos governantes! Convém não esquecer ainda que somos mulheres, e, como tais, não podemos lutar contra homens; e, também, que estamos submetidas a outros, mais poderosos, e que nos é forçoso obedecer a suas ordens, por muito dolorosas que nos sejam. De minha parte, pedindo a nossos mortos que me perdoem, visto que sou obrigada, obedecerei aos que estão no poder. É loucura tentar aquilo que ultrapassa nossas forças!
Antígone: Não insistirei mais; e, ainda que mais tarde queiras ajudar-me, já não me darás prazer algum. Faze tu o que quiseres; quanto a meu irmão, eu o sepultarei! Será um belo fim, se eu morrer tendo cumprido esse dever.1 Querida, como sempre fui, por ele, com ele repousarei no túmulo... com alguém a quem amava; e meu crime será louvado, pois o tempo que terei para agradar aos mortos, é bem mais longo do que o consagrado aos vivos... Hei de jazer sob a terra eternamente!... Quanto a ti, se isso te apraz, despreza as leis divinas!
Ismênia: Não! Não as desprezo; mas não tenho forças para agir contra as leis da cidade.
Antígone: Invoca esse pretexto; eu erguerei um túmulo para meu irmão muito amado!
(...)
Ismênia: Tu pareces desejar, com o coração ardente, o que nos causa calafrios de pavor!
Antígone: Só sei que cumpro a vontade daqueles a quem devo agradar.
Ismênia: Se tu o fizeres... mas o que desejas é impossível!
Antígone: Quando me faltarem as forças, eu cederei
Ismênia: Mas não é prudente tentar o que é irrealizável!
Antígone: Visto que assim me falas, eu te odiarei! E serás odiosa, também, ao morto, junto a quem serás um dia depositada... E com razão! Vamos! Deixa-me, com minha temeridade, afrontar o perigo! Meu sofrimento nunca há de ser tão grande, quanto gloriosa será minha morte!
Ismênia: Já que assim queres, vai! Bem sabes que cometes um ato de loucura, mas provas tua dedicação por aqueles a quem amas!

A sentença de Creonte - Antígona (Silvagini).
Creonte: Fala, agora, por tua vez; mas fala sem demora! Sabias que, por uma proclamação, eu havia proibido o que fizeste?
Antígone: Sim, eu sabia! Por acaso poderia ignorar, se era uma coisa pública?
Creonte: E apesar disso, tiveste a audácia de desobedecer a essa determinação?
Antígone: Sim, porque não foi Júpiter que a promulgou; e a Justiça, a deusa que habita com as divindades subterrâneas, jamais estabeleceu tal decreto entre os humanos; nem eu creio que teu édito tenha força bastante para conferir a um mortal o poder de infringir as leis divinas, que nunca foram escritas, mas são irrevogáveis; não existem a partir de ontem, ou de hoje; são eternas, sim! e ninguém sabe desde quando vigoram!- Tais decretos, eu, que não temo o poder de homem algum, posso violar sem que por isso me venham a punir os deuses! Que vou morrer, eu bem sei: é inevitável; e morreria mesmo sem a tua proclamação. E, se morrer antes do meu tempo, isso será, para mim, uma vantagem, devo dizê-lo! Quem vive, como eu, no meio de tão lutuosas desgraças, que perde com a morte?Assim, a sorte que me reservas é um mal que não se deve levar em conta; muito mais grave teria sido admitir que o filho de minha mãe jazesse sem sepultura; tudo o mais me é indiferente! Se te parece que cometi um ato de demência, talvez mais louco seja quem me acusa de loucura!
(...)
Antígone : Eu não nasci para partilhar de ódios, mas somente de amor!
Creonte : Desce, pois, à sepultura!... Visto que queres amar, ama aos que lá encontrares! Enquanto eu vivo for, nenhuma mulher me dominará!
Morte de Antígona (Riotti)

Coro: Amor, invencível Amor, tu que subjugas os mais poderosos; tu, que repousas nas faces mimosas das virgens; tu que reinas, tanto na vastidão dos mares, como na humilde cabana do pastor; nem os deuses imortais, nem os homens de vida transitória podem fugir a teus golpes; e, quem for por ti ferido, perde o uso da razão!  Tu arrastas, muita vez, o justo à prática da injustiça, e o virtuoso, ao crime; tu semeias a discórdia entre as famílias... Tudo cede à sedução do olhar de uma mulher formosa, de uma noiva ansiosamente desejada; tu, Amor, te equiparas, no poder, às leis supremas do universo, porque Vênus zomba de nós!

(...)

Antigone: E agora sou arrastada, virgem ainda, para morrer, sem que houvesse sentido os prazeres do amor e os da maternidade. Abandonada por meus amigos, caminho, viva ainda, para a mansão dos mortos. Deuses imortais, a qual de vossas leis eu desobedeci? Mas... de que me serve implorar os deuses? Que auxílio deles posso receber, se foi por minha piedade que atraí sobre mim o castigo reservado aos ímpios? Se tais coisas merecem a aprovação dos deuses, reconheço que sofro por minha culpa; mas se provém de meus inimigos, eu não lhes desejo um suplício mais cruel do que o que vou padecer!
Antígone - 1961 (com Irene Papas) - Filme completo disponível no youtube

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Experiência e pobreza - Walter Benjamin

Em nossos livros de leitura havia a parábola de um velho que no momento da morte revela a seus filhos a existência de um tesouro enterrado em seus vinhedos. Os filhos cavam, mas não descobrem qualquer vestígio do tesouro. Com a chegada do outono, as vinhas produzem mais que qualquer outra na região. Só então compreenderam que o pai lhes havia transmitido uma certa experiência: a felicidade não está no ouro, mas no trabalho. Tais experiências nos foram transmitidas, de modo benevolente ou ameaçador, à medida que crescíamos: "Ele é muito jovem, em breve poderá compreender". Ou: "Um dia ainda compreenderá". Sabia-se exatamente o significado da experiência: ela sempre fora comunicada aos jovens. De forma concisa, com a autoridade da velhice, em provérbios; de forma prolixa, com a sua loquacidade, em histórias; muitas vezes como narrativas de países longínquos, diante da lareira, contadas a pais e netos. Que foi feito de tudo isso? Quem encontra ainda pessoas que saibam contar histórias como elas devem ser contadas? Que moribundos dizem hoje palavras tão duráveis que possam ser transmitidas como um anel, de geração em geração? Quem é ajudado, hoje, por um provérbio oportuno? Quem tentará, sequer, lidar com a juventude invocando sua experiência?
Não, está claro que as ações da experiência estão em baixa, e isso numa geração que entre 1914 e 1918 viveu uma das mais terríveis experiências da história. Talvez isso não seja tão estranho como parece. Na época, já se podia notar que os combatentes tinham voltado silenciosos do campo de batalha. Mais pobres em experiências comunicáveis, e não mais ricos. Os livros de guerra que inundaram o mercado literário nos dez anos seguintes não continham experiências transmissíveis de boca em boca. Não, o fenômeno não é estranho. Porque nunca houve experiências mais radicalmente desmoralizadas que a experiência estratégica pela guerra de trincheiras, a experiência econômica pela inflação, a experiência do corpo pela fome, a experiência moral pelos governantes. Uma geração que ainda fora à escola num bonde puxado por cavalos viu-se abandonada, sem teto, numa paisagem diferente em tudo, exceto nas nuvens, e em cujo centro, num campo de forças de correntes e explosões destruidoras, estava o frágil e minúsculo corpo humano (...).
Aqui se revela, com toda clareza, que nossa pobreza de experiências é apenas uma parte da grande pobreza que recebeu novamente um rosto, nítido e preciso como o do mendigo medieval. Pois qual o valor de todo o nosso patrimônio cultural, se a experiência não mais o vincula a nós? A horrível mixórdia de estilos e concepções do mundo do século passado mostrou-nos com tanta clareza aonde esses valores culturais podem nos conduzir, quando a experiência nos é subtraída, hipócrita ou sorrateiramente, que é hoje em dia uma prova de honradez confessar nossa pobreza. Sim, é preferível confessar que essa pobreza de experiência não é mais privada, mas de toda a humanidade. Surge assim uma nova barbárie.
Barbárie? Sim. Respondemos afirmativamente para introduzir um conceito novo e positivo de barbárie. Pois o que resulta para o bárbaro dessa pobreza de experiência? Ela o impele a partir para a frente, a começar de novo, a contentar-se com pouco, a construir com pouco, sem olhar nem para a direita nem para a esquerda. Entre os grandes criadores sempre existiram homens implacáveis que operaram a partir de uma tábula rasa. Queriam uma prancheta: foram construtores. A essa estirpe de construtores pertenceu Descartes, que baseou sua filosofia numa única certeza — penso, logo existo — e dela partiu. Também Einstein foi um construtor assim, que subitamente perdeu o interesse por todo o universo da física, exceto por um único problema — uma pequena discrepância entre as equações de Newton e as observações astronômicas. Os artistas tinham em mente essa mesma preocupação de começar do principio quando se inspiravam na matemática e reconstruíam o mundo, como os cubistas, a partir de formas estereométricas, ou quando, como Klee, se inspiravam nos engenheiros. Pois as figuras de Klee são por assim dizer desenhadas na prancheta, e, assim como num bom automóvel a própria carroceria obedece à necessidade interna do motor, a expressão fisionômica dessas figuras obedece ao que está dentro. Ao que está dentro, e não à interioridade: é por isso que elas são bárbaras (...).
Pobreza de experiência: não se deve imaginar que os homens aspirem a novas experiências. Não, eles aspiram a libertar-se de toda experiência, aspiram a um mundo em que possam ostentar tão pura e tão claramente sua pobreza externa e interna, que algo de decente possa resultar disso. Nem sempre eles são ignorantes ou inexperientes. Muitas vezes, podemos afirmar o oposto: eles "devoraram" tudo, a "cultura" e os "homens", e ficaram saciados e exaustos. "Vocês estão todos tão cansados — e tudo porque não concentraram todos os seus pensamentos num plano totalmente simples mas absolutamente grandioso." Ao cansaço segue-se o sonho, e não é raro que o sonho compense a tristeza e o desânimo do dia, realizando a existência inteiramente simples e absolutamente grandiosa que não pode ser realizada durante o dia, por falta de forças. A existência do camundongo Mickey é um desses sonhos do homem contemporâneo. É uma existência cheia de milagres, que não somente superam os milagres técnicos como zombam deles. Pois o mais extraordinário neles é que todos, sem qualquer improvisadamente, saem do corpo do camundongo Mickey, dos seus aliados e perseguidores, dos móveis mais cotidianos, das árvores, nuvens e lagos. A natureza e a técnica, o primitivismo e o conforto se unificam completamente, e aos olhos das pessoas, fatigadas com as complicações infinitas da vida diária e que vêem o objetivo da vida apenas como o mais remoto ponto de fuga numa interminável perspectiva de meios, surge uma existência que se basta a si mesma, em cada episódio, do modo mais simples e mais cômodo, e na qual um automóvel não pesa mais que um chapéu de palha, e uma fruta na árvore se arredonda como a gôndola de um balão.
Podemos agora tomar distância para avaliar o conjunto. Ficamos pobres. Abandonamos uma depois da outra todas as peças do patrimônio humano, tivemos que empenhá-las muitas vezes a um centésimo do seu valor para recebermos em troca a moeda miúda do "atual". A crise econômica está diante da porta, atrás dela está uma sombra, a próxima guerra. A tenacidade é hoje privilégio de um pequeno grupo dos poderosos, que sabe Deus não são mais humanos que os outros; na maioria bárbaros, mas não no bom sentido. Porém os outros precisam instalar-se, de novo e com poucos meios. São solidários dos homens que fizeram do novo uma coisa essencialmente sua, com lucidez e capacidade de renúncia. Em seus edifícios, quadros e narrativas a humanidade se prepara, se necessário, para sobreviver à cultura. E o que é mais importante: ela o faz rindo. Talvez esse riso tenha aqui e ali um som bárbaro. Perfeito. No meio tempo, possa o indivíduo dar um pouco de humanidade àquela massa, que um dia talvez retribua com juros e com os juros dos juros.

Escrito em 1933

(Walter Benjamin – Obras escolhidas. Vol. 1. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Prefácio de Jeanne Marie Gagnebin. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 114-9).

De Hannah para Heidegger



"Caro Martin,
Dirijo-me a você com a antiga certeza e com o velho pedido: não se esqueça de mim e não esqueça o quão profundamente sei que o nosso amor foi a bênção da minha vida. Nada é capaz de abalar esse saber – e isso mesmo agora, no momento em que encontrei uma pátria e um porto seguro para o meu desespero (...) Escuto às vezes algo sobre você. No entanto, tudo envolto em um tom particularmente estranho e indireto: no tom que sempre está presente na elocução dos nomes famosos. De um modo quase torturante, gostaria tanto de saber como você está, em que está trabalhando e como Freiburg o está recebendo!
Um beijo meu em sua fronte e em seus olhos.
Sua Hannah"
Trecho de carta de 1929
  
(In: Estranho amor. Matéria da revista Veja de 13/12/00. Disponível em: http://veja.abril.com.br/131200/p_230.html)

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

O feitiço de Áquila (Ladyhawke - 1985) - trecho

"Phillipe: Are you flesh, or are you spirit?
Isabeau: I am sorrow".

Uma história de tanto amor - Clarice Lispector (trecho)

"...dessa vez era um amor mais realista e não romântico; era o amor de quem já sofreu por amor".
(In: Felicidade Clandestina. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p. 142).

Cem anos de perdão - Clarice Lispector (trecho)

"Não me arrependo: ladrão de rosas e de pitangas tem cem anos de perdão. As pitangas, por exemplo, são elas mesmas que pedem para ser colhidas, em vez de amadurecer e morrer no galho, virgens".
(In: Felicidade Clandestina. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p.62).
“Se alguém me perguntasse o que somos, o que o homem é, responder-lhe-ía: é a abertura a todo o possível, é expectativa que nenhuma satisfação material poderá apaziguar”.

(Georges Bataille. O Erotismo. Citado por Catarina Moura in: "A vertigem - da ausência como lugar do corpo. Artigo disponível no link: http://www.bocc.ubi.pt/pag/moura-catarina-culturas-vertigem.pdf).

terça-feira, 31 de julho de 2012

Instante de ver, tempo de compreender e momento de concluir


"Entre as múltiplas virtudes de Chuang-Tsê estava a habilidade para desenhar. O rei pediu-lhe que desenhasse um caranguejo. Chuang-Tsê disse que para fazê-lo precisaria de cinco anos e uma casa com doze empregados. Passados cinco anos, não havia sequer começado o desenho. “Preciso de outros cinco anos”, disse Chuang-Tsê. O rei concordou. Ao completar-se o décimo ano, Chuang-Tsê pegou o pincel e num instante, com um único gesto, desenhou um caranguejo, o mais perfeito caranguejo que jamais se viu".

( Ítalo Calvino. Seis propostas para o próximo milênio - citado por Maria Rita Kehl no programa Fronteiras do Pensamento de 26/10/09. Vídeo disponível no youtube em 4 partes: http://www.youtube.com/watch?v=pPAi4N8koHE).

segunda-feira, 30 de julho de 2012


“... fui internado onti, na cabine centoitres, d’hospício
d’Engenho d’Dentro, só comigo tinha dez. Eu tô doente do
peito, tô doente do coração, a minha cama já virou leito,
disseram que eu perdi a razão...”
Sérgio Sampaio

Antígona

“...o que é a transgressão da lei contra a transgressão que pertence à própria lei?”
Bertold Brecht
Ópera dos Três Vinténs

Amor sem fim

Heidegger e Hannah Arendt falam sobre o que é o amor e a possibilidade da eternidade dessa paixão, a partir da leitura de Agostinho e de Kierkegaard.

Matéria disponível no link:

sexta-feira, 27 de julho de 2012