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domingo, 23 de setembro de 2012

Possuíram-se como amantes - Mário Sá-Carneiro

"Raul e Marcela - dizia-se - não eram dois esposos, eram dois amantes. Com efeito, para a sociedade, existe uma grande diferença entre marido e mulher e amante e amante. No primeiro caso, é o amor consentido, o amor burocrata, membro da Academia; sério e circunspecto. Resume-se todo no amplexo consente e ordena - na produção dos filhos: "Crescei e multiplicai-vos!". Os esposos dignos devem respeitar-se até mesmo no delicioso momento em que os seus corpos se unem num feixe palpitante de carne e nervos. Devem ser comedidos no prazer, reservados na loucura: devem refrear os sentidos, abafar os suspiros...
O amor dos amantes é, pelo contrário, livre; livre de todas as peias, de toda a hipocrisia. Não tem que guardar reservas: pode beijar as bocas, os seios, os corpos todos...É a liberdade na paixão e, como é liberdade, granjeou o ódio da "gente honesta".
Tudo isto é absurdo...tudo isto é verdadeiro. Que diferença pode haver entre a posse de duas criaturas unidas por um contrato grafado a tinta negra e a de outras a quem nada liga senão um sentimento de amor mútuo?
É por isto mesmo que os esposos que se amam como esposos, se não amam.
(...) Raul e Marcela amavam-se verdadeiramente; quer dizer: não se amavam como esposos (...).
A sua noite de núpcias não havia sido o vulgar estúpido e brutal momento psicológico - "enfim sós!" - episódio tragicômico lamentavelmente ridículo (...).
Bem diferente tinha sido a noite de noivos de Marcela e Raul. Espíritos desprendidos, francos e livres, não se envergonhavam de ser animais; possuíram-se encarando o ato como o mais natural, o mais humano, visto que é ele que fabrica a vida, que fabrica os homens...Possuíram-se como amantes, não se possuíram como esposos..." -
 
(In: Loucura e O Incesto. Rio e Janeiro: Lacerda Editores, 1997, p.30-1).


segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Dentro, fora - Jacques Lacan

"...o exterior, para o sujeito, é inicialmente dado não como alguma coisa que se projeta a partir de seu interior, de suas pulsões, mas como a sede, o lugar onde se situa o desejo do Outro, e onde o sujeito tem que ir encontrá-lo" -
(Jacques Lacan. Seminário V: as formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Zahar, 1995, p.283).

Quintana no Paraíso

(Na estação Paraíso do metrô/SP).

sábado, 15 de setembro de 2012

No café

"A maior coragem é se deixar amar por quem você ama" -
(by Cecilia Carmen Casemiro durante o café da manhã de sexta feira). 

terça-feira, 11 de setembro de 2012

Sobre o 11 de setembro

No momento em que pensamos nos termos: "É verdade, a queda do WTC foi uma tragédia, mas não podemos nos solidarizar inteiramente com as vítimas, pois isso significaria apoiar também o capitalismo americano", já estamos diante da catástrofe ética: a única atitude aceitável é a solidariedade incondicional com todas as vítimas. A atitude ética correta é aqui substituída pela matemática moralizadora da culpa e do horror, que perde de vista um ponto importante: a morte terrível de todo indivíduo é absoluta e incomparável" - 
(Slavoj Zizek. Bem-vindo ao deserto do real. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 68).

Oscar Wilde



segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Bansky & Stendhal

 
"A Revolução virá, mas não há razão para se rejeitar as alegrias da existência" - Stendhal 

domingo, 9 de setembro de 2012

Nossa aurora virá - David Rudskin

 
"Cuida da flama, até que possamos despertar novamente, seguros.
A flama está em nossas mãos, a confiamos a ti, este nosso demônio sagrado da ingovernabilidade.
Cuida da flama e descansaremos em paz.
Criança, sê estranha, obscura, verdadeira, impura e dissonante.
Cuida da nossa flama".


sábado, 8 de setembro de 2012

Perfect sense - filme (trecho)

"Aceitação.
Perdão.
Amor.
Está escuro agora, mas sentem a respiração um do outro e sabem tudo que precisam saber.
Eles se beijam.
E sentem as lágrimas do outro em suas bochechas.
E se houvesse restado alguém para vê-los, teriam parecido simples amantes acariciando os rostos um do outro.
Corpos colados.
Olhos fechados.
Insconscientes do mundo ao redor.
Porque é assim que a vida passa.
Assim".
 
Trailer disponível no youtube:


sexta-feira, 7 de setembro de 2012

A origem do drama trágico alemão - Walter Benjamin

 
"O valor dos fragmentos de pensamento é tanto mais decisivo quanto menos imediata é a sua relação com a concepção de fundo, e desse valor depende o fulgor da representação, na mesma medida em que o do mosaico depende da qualidade da pasta de vidro"- (p.17).
*
"...o ser humano é belo para aquele que ama, e não em si. E a explicação está no fato de o seu corpo se representar numa ordem superior à do belo. O mesmo se passa com a verdade: ela não é bela em si, mas para aquele que a busca. Poderá haver nisto uma pontinha de relativismo, mas nem por isso a beleza que deve ser inerente à verdade se torna um epíteto metafórico. Pelo contrário, a essência da verdade como essência do reino das ideias que se representa garante que o discurso sobre a beleza da verdade jamais poderá ser afetado. De fato, aquele momento de representação é por excelência o refúgio da beleza. O belo permanece na esfera da aparência, palpável, enquanto se reconhecer abertamente como tal. Manifestando-se como aparência, e seduzindo enquanto não quiser ser mais do que isso mesmo, atrai a perseguição do entendimento e torna reconhecível a sua inocência apenas no momento em que se refugia no altar da verdade. Eros segue-o nesta sua fuga, não como perseguidor, mas como amante; e de tal modo que a beleza, para se manter aparência, foge sempre dos dois, do entendimento por temor e do amante por angústia. E só este pode testemunhar que a verdade não é desvelamento que destrói o mistério, mas antes uma revelação que lhe faz justiça" - (p.19)
*
"A verdade nunca se manifesta em relação, e muito menos numa relação intencional. O objeto de conhecimento determinado pela intencionalidade do conceito não é a verdade. A verdade é um ser inintencional (...). O procedimento que lhe é adequado não será, assim, de ordem intencional cognitiva, mas passa, sim, pela imersão e pelo desaparecimento nela. A verdade é a morte da intenção"- (Walter Benjamin. A origem do drama trágico alemão. São Paulo: Autêntica, 2011, p.24)
  

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Lá na Palestina

"Nos han robado la tierra y la seguridad. Nos han puesto en campos de angustia y de prohibición. Nos han ametrallado en todos los sitios. Nos han prohibido los derechos humanos. Nos han querido torturar y rendirnos. Y han ignorado que somos siempre como un volcán Y resurgirán de nosotros hombres, donde no los haya" -  
(tradução da incrição em um muro na Palestina).

Mais Zizek

terça-feira, 4 de setembro de 2012

A tinta que falta - Slavoj Zizek

"Numa antiga anedota que circulava na hoje falecida República Democrática Alemã, um operário alemão consegue um emprego na Sibéria; sabendo que toda correspondência será lida pelos censores, ele combina com os amigos: "Vamos combinar um código: se um carta estiver escrita em tinta azul, o que ela diz é verdade; se estiver escrita em tinta vermelha, tudo é mentira". Um mês depois, os amigos recebem uma carta escrita em tinta azul: "Tudo aqui é maravilhoso: as lojas vivem cheias, a comida é abundante, os apartamentos são grandes e bem aquecidos, os cinemas exibem filmes do Ocidente, há muitas garotas, sempre prontas para um programa - o único senão é que não se consegue encontrar tinta vermelha". Neste caso, a estrutura é mais refinada do que indicam as aparências: apesar de não ter como usar o código combinado para indicar que tudo o que está dito é mentira, mesmo assim ele consegue passar a mensagem; como? Pela introdução da referência ao código, como um de seus elementos, na própria mensagem codificada. Evidentemente, este é o problema padrão da autoreferência: como a carta foi escrita em tinta azul, todo o seu conteúdo não teria de ser verdadeiro? A resposta é que o fato de a mensagem ter mencionado a inexistência de tinta vermelha indica que ela deveria ter sido escrita em vermelho. O interessante é que esta menção à inexistência de tinta vermelha produz o efeito da verdade independentemente da sua própria verdade literal: ainda que houvesse tinta vermelha, a mentira de ela não existir é a única forma de transmitir a mensagem verdadeira naquela condição específica de censura.
Não é esta a matriz de uma crítica eficaz da ideologia - não somente em condições "totalitárias" de censura, mas, talvez ainda mais, nas condições mais refinadas da censura liberal? Começa-se pela concordância com relação à existência de todas as liberdades desejadas - e então simplesmente se acrescenta que a única coisa em falta é a "tinta vermelha": sentimo-nos livres pela falta de uma língua em que articular nossa não liberdade. Esta falta de tinta vermelha significa que atualmente todos os termos usados para descrever o presente conflito - "guerra contra o terrorismo", "democracia e liberdade", "direitos humanos", etc. - são temros falsos, que mistificam nossa percepção da situação em vez de nos permitir pensála. Neste sentido preciso, nossas "liberdades" servem para mascarar e manter nossa infelicidade mais profunda. Cem anos atrás, ao enfatizar a aceitação de algum dogma fixo como a condição da verdadeira liberdade, Gilbert Keith Chesterton percebeu claramente o potencial antidemocrático do princípio de liberdade de pensamento:
Em termos gerais, podemos afirmar que o livre pensamento é a melhor d etodas as salvaguardas contra a liberdade. Aplicada conforme o estilo moderno, a emancipação da mente do escravo é a melhor forma de evitar a emancipação do escravo. Basta lhe ensinar a se preocupar em saber se quer realmente ser livre, e ele não será capaz de se libertar.
E não seria isso enfaticamente verdadeiro com relação à época pós-moderna, em que existe a liberdade de desconstruir, duvidar, distanciar-se? Não devemos esquecer de que a afirmação de Chesterton é a mesma afirmação feita por Kant em seu "O que é o Iluminismo?": "Pense o quanto quiser, com toda a liberdade que quiser, mas obedeça!". A única diferença é que Chesterton é mais específico, e esclarece o paradoxo implícito oculto no raciocínio de Kant: a liberdade de pensamento não somente não solapa a servidão social real, mas na verdade a sustenta (...)".
(Slavoj Zizek. Bem-vindo ao deserto do real. Boitempo, 2004, p. 15-7).

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Lavoura arcaica - Raduan Nassar (II)

"...a razão é pródiga, qwuerida irmã, corta em qualquer direção, consente qualquer atalho, bastando que sejamos hábeis no manejo dessa lâmina; para vivermos nossa paixão, despojemos nossos olhos de artifúcios, das lentes de aumento e das cores tormentosas de outros vidros..." (p.132).
*
"estou banhado em fel, Ana, mas sei como enfrentar tua rejeição, já carrego no vento do temporal uma raiva perpétua, tenho o fôlego obstinado, tenho requintes de alquimista, sei como alterar o enxofre com a virtude das serpentes, e, na caldeira, sei como dar à fumaça  que sobe da borbulha a frieza da cerração das madrugadas; vou cultivar o meu olhar, plantar nele uma semente que não germina, será uma terra que não fecunda, um chão caapaz de necrosar como as geadas as folhas das árvores...." - (p.137).
 "...e quanto mais engrossam a casca, mais se torturam com o peso da carapaça, pensam que estão em segurança mas se consomem de medo, escondem-se dos outros sem saber que atrofiam os próprios olhos, fazem-se prisioneiros de si mesmos e nem sequer suspeitam, trazem na mão a chave mas se esquecem que ela abre, e, obsessivos, afligem-se com seus problemas pessoais sem chegar à cura..." -(p.145).
"- Eu também tenho uma história, pai, é também a história de um faminto, que mourejava de sol a sol sem nunca conseguir aplacar sua fome, e que de tanto se contorcer acabou por dobrar o corpo sobre si mesmo alcançando com os dentes as pontas dos próprios pés; sobrevivendo à custa de tantas chagas, ele só podia odiar o mundo (...).
- É muito estranho o que estou ouvindo.
- Estranho é o mundo, pai, que só se une se desunindo; erguida sobre acidentes, não há ordem que se sustente; não há nada mais espúrio do que o mérito, e não fui eu que semeei esta semente" - (p. 157-163).
*
"-Corrija a displicência dos teus modos de ver: é forte quem enfrenta a realidade; e depois, estamos em família, que só um insano tomaria por ambiente hostil.
-Forte ou fraco, isso depende: a realidade não é a mesma para todos, e o senhor não ignora, pai, que sempre gora o ovo que não é galado; o tempo é farto e generoso, mas não devolve a vida aos que não nasceram; aos derrotados de partida, ao fruto peco já na semente, aos arruinados sem terem sido erguidos, não resta outra alternativa: dar as costas para o mundo, ou alimentar a expectativa da destruição de tudo;de minha parte, a única coisa que sei é que todo meio é hostil, desde que negue direito à vida"- (p.164-5).
*
"- O amor que aprendemos aqui, pai, só muito tarde fui descobrir que ele não sabe o que quer; essa indecisão fez dele um valor ambíguo, não passando hoje de uma pedra de tropeço; ao contrário do que se supõe, o amor nem sempre aproxima, o amor também desune; e não seria nenhum disparate eu concluir que o amor na família pode não ter a grandeza que se imagina" - (p.166).
"Meu pai sempre dizia que o sofrimento melhora o homem, desenvolvendo seu espírito e aprimorando sua sensibilidade; ele dava a entender que quanto maior fosse a dor tanto ainda o sofrimento cumpria sua função mais nobre; ele parecia acreditar que a resistência de um homem era inesgotável. Do meu lado, aprendi bem cedo que é difícil determinar onde acaba nossa resistência, e também muito cedo aprendi a ver nela o traço mais forte do homem; mas eu achava que, se da corda de um alaúde - esticada até o limite - se podia tirar uma nota afinadíssima (supondo-se que não fosse mais que um arranhado melancólico e estridente) ninguém contudo conseguiria extrair nota alguma se a mesma fosse distendida até o rompimento" - (p.171-2).
(In. Lavoura Arcaica. São Paulo: Companhia das Letras, 2007).

Lavoura arcaica - Raduan Nassar (I)

"Os olhos no teto, a nudez dentro do quarto; róseo, azul ou violácio, o quarto é inviolável; o quarto é individual, é um mundo, quarto catedral, onde, nos intervalos da angústia, se colhe, de um áspero caule, na palma da mão, a rosa branca do desespero, pois entre os objetos que o quarto consagra estão primeiro os objetos do corpo..." - (p.7).
"...meu irmão chorava a minha demência, discretamente, longe de suspeitar que percebido assim eu acabava de receber mais uma graça: liberado na loucura, eu que só estava a meio caminho da lúcida escuridão; eu quis dizer para ele "tempere nesta mão a viz potente, a ternura contida, a palavra certa, corra com ela meus cabelos, afague-os, proteja minha nuca..." - (p. 73-4).
"Como podia o homem que tem o pão na mesa, o sal para salgar, a carne e o vinho, contar a história de um faminto?" - (p.84).
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"...quantas mulheres, quantos varões, quantos ancestrais, quanta peste acumulada, que caldo mais grosso neste fruto da família! eu tinha simplesmente forjado o punho, erguido a mão e decretado a hora: a impaciência também tem os seus direitos!" - (p.88).
"...nenhum espaço existe se não for fecundado, como quem entra na mata virgem e se aloja no seu interior, como quem penetra num círculo de pessoas em vez de circundá-lo timidamente de longe..." - (p. 87).
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"...que instante, que instante terrível é esse que marca o salto? que massa de vento, que fundo de espaço concorrem para levar ao limite? o limite em que as coisas já desprovidas de vibração deixam de ser simplesmente vida na corrente do dia-a-dia para ser vida nos subterrâneos da memória..." - (p.97).
"Era Ana, era Ana, Pedro, era Ana a minha fome, explodi de repente num momento alto, expelindo num só jato violento meu carnegão maduro e pestilento, era Ana a minha enfermidade, ela a minha loucura, ela o meu respiro, a minha lâmina, meu arrepio, meu sopro, o assédio impertinente dos meus testículos" gritei de minha boca escancarada, expondo a textura da minha língua exuberante..." - (p. 107).
"...eu tinha de gritar em furor que a minha loucura era mais sábia que a sabedoria do pai, que a minha enfermidade era mais conforme que a saúde da família, que os meus remédios não foram jamais inscritos nos compêndios, mas que existia uma outra medicina (a minha!) e que fora de mim eu não conhecia qualquer ciência, e que era tudo só uma questão de perspectiva..." (p.109).
"...eu não sabia que o amor requer vigília: não há paz que não tenha um fim, supremo bem, um termo, nem taça que não tenha um fundo de veneno; era a minha sabedoria corrente, mas que frivolidade a minha, alguém mais forte do que eu é que puxava a linha e, menino esperto e sagaz, eu tinha caído na propalada armadilha do destino: enfiou seus longos braços no fruto do meu saco, pinçou nos finos dedos o fundo, e súbito, num fechar d´olhos, virou meu doce mundo pelo avesso" - (p. 114).
*
"...desde menino, eu não era mais que uma sombra feita à margem do destino, também eu complicava os momentos de um trajeto: construía uma trilha sinuosa com grãos de milho até a peneira, embora a linha que decidisse, escondida sob a areia, corresse esticada numa só reta; por que então esses caprichos, tantas cenas, empanturrar-nos de expectativas, se já estava decidida a minha sina?" - (p.117).
(In. Lavoura Arcaica. Raduan Nassar. São Paulo: Companhia das Letras, 2007).