"Há sempre algo que me escapa. Talvez esteja nessa vivência original o grande mal-entendido" - (p.25).
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"Eu penso, casei com uma mulher e com a biblioteca dessa mulher. Casei com as leituras dessa mulher. E com os livros que ela comprou e nunca leu. Luiza volta com um livro na mão, aqui o húngaro que você está procurando, depois me dá um beijo e volta para a mesa de jantar onde além do computador, acumulam-se uma série de teses de mestrado e doutorado, trabalhos de faculdade, cadernos, pequenos vasos de plantas, velas. Luiza espalha suas coisas por toda a casa, quadros, plantas, enfeites, pouco a pouco foi ocupando todos os espaços. Eu olho para ela, surpreso que isso não me incomode" - (p.27).
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"Não é fácil ter um corpo, não é algo necessariamente natural, para isso é preciso coragem. Faço alguns ensaios. Abro um pote de creme, passo pelas pernas, coxas, braços, o creme promete manter a pele brilhante e elástica. Uma pele que não se desfaça, que mantenha órgãos e vísceras ordenados naquele espaço vazio, ou que ao menos dê limites a essa espaço. O corpo é uma rede que nos envolve" - (p.46).
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"A casa das palavras é frágil e ressecada. Eu te amo, diz o texto. Talvez entre o eu te amo e o amor propriamente dito haja um espaço intransponível. Talvez o tempo que passa. Mas não apenas. Talvez um inevitável desencontro. Essa incoerência " - (p. 64-65).
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"Você não sabe o que é a morte, o que é chegar muito perto da morte, tê-la ao seu lado, dentro de você, mas eu sei, e não desta morte agora, esta morte do dia a dia, eu me refiro à outra, àquela que escava, que invade, que aprofunda no corpo, a morte agarrada ao corpo, feito um polvo, a morte e seus tentáculos de polvo, suas ventosas. Eu tinha dezenove anos quando vi a morte pela primeira vez, quando a conheci, e ela me acompanharia o resto da vida, até agora, até que a morte me resgate da morte, entende?" - (p.85).
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"Aos quarenta e seis anos tudo o que eu tenho é um apartamento alugado, dois quartos, na realidade um quarto e outro reversível. Tenho também Nina, mas não a tenho, tenho também um trabalho, mas não o tenho. É necessário coragem para possuir as coisas, o homem velho diz, porque coragem não é só sair por aí vociferando meia dúzia de ideais, coragem é ser capaz das coisas mais prosaicas, como ter coisas que te prendam a um lugar, que te amarrem, coisas que pesem sobre teus ombros, veja esta casa, ela pesa sobre os meus ombros, veja estes livros, esta casa, esta mesa, estas paredes, está vendo?, tudo aqui pesa sobre os meus ombros, inclusive você, nada mais pesado do que você sobre os meus ombros, desde o início (...) Porque o peso não te deixa ir embora" - (p. 102).
(In. O inventário das coisas ausentes. Carola Saavedra. São Paulo: Companhia das Letras, 2014).
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Sobre o livro:
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