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quarta-feira, 31 de julho de 2013

A morte de Exupéry

No dia 31 de julho de 1944, o escritor, poeta e aviador francês Antoine de Saint-Exupéry desapareceu durante um voo na região de Marselha.
Nascido em 29 de junho de 1900 numa família saída da nobreza, Saint-Exupery consegue uma infância feliz ainda que diante da morte prematura do pai. Concluído o ensino médio, tentou ingressar, sem sucesso, na Escola Naval. Orienta-se então para as belas artes e arquitetura. Obteve o brevê de aviador quando servia o exército em 1921.
É contratado pela companhia aeropostal em 1926, passando a transportar correspondência e mercadorias de Toulouse ao Senegal. Paralelamente publica, inspirando-se em suas experiências de aviador, seus primeiros romances: Correio do Sul, em 1929, e, sobretudo, Voo Noturno, em 1931.
Lockheed F5B , avião em que Antoine de Saint-Exupéry desapareceu
A partir de 1932, passa a se dedicar ao jornalismo. Realiza grandes reportagens no Vietnã, em 1934, em Moscou, em 1935 e na Espanha, em 1936. Todas as estadas alimentariam as reflexões que desenvolve em Terra dos Homens, publicado em 1939. É nesse ano que acaba mobilizado na aeronáutica francesa. Após o armistício com a Alemanha, deixa a França e viaja a Nova York, tornando-se uma das vozes da resistência.
Ansioso por entrar em ação, incorpora-se a uma unidade encarregada de reconhecimento fotográfico aéreo na Sardenha, durante a primavera de 1944. Ao tentar acompanhar o desembarque em Provence em 31 de julho de 1944, acaba desaparecendo. Se a morte do comandante Saint-Exupery acabou glorificada, ainda assim restava elucidar as circunstâncias. Seu avião só foi encontrado em 2004.
O Pequeno Príncipe, escrito em Nova York, durante a guerra, é publicado com suas próprias ilustrações em 1943. Esse conto, pleno de encanto e humanidade, conquista rapidamente um imenso sucesso mundial.
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En 1950, um pastor de Aix-la-Chapelle, antigo oficial de informações da Luftwaffe, alegou ter visto no dia 31 de julho de 1944 um modelo P-38 Lightning sendo abatido no Mediterrâneo por um Focke-Wulf alemão. Em 1972, surge o testemunho póstumo de um jovem oficial alemão, Robert Heichele, que teria atirado contra o Lightning, por volta do meio-dia, sobre a costa mediterrânea francesa. Nos anos 1990, surge tardiamente outro testemunho, no qual um habitante de Carqueiranne alegou ter visto, naquele fatídico dia, um avião ser abatido. O mar teria em seguido levado o corpo de um soldado à praia, que foi enterrado anonimamente no cemitério da comuna.
O corpo foi exumado e seu DNA testado. Os resultados, contudo, se mostraram negativos. A cada passo essas revelações realimentavam o interesse dos especialistas e do grande público no mistério de Saint-Exupery.
Enfim, em 2000, pedaços de sua aeronave são encontrados no Mediterrâneo. Remontados em setembro de 2003, os restos do avião são formalmente identificados em 7 de abril de 2004 graças ao número de série do aparelho. Os destroços do Lightning estão expostos no Museu do Ar e do Espaço de Bourget, num espaço dedicado ao escritor-piloto.
Nada, contudo, permite chegar a uma conclusão definitiva sobre as circunstâncias de sua morte, ainda que simulações informáticas do acidente revelem a aeronave se partindo na vertical e em grande velocidade.
Alguns chegaram mesmo a cogitar, para escândalo dos familiares do autor, a hipótese de suicídio de um Saint-Exupery debilitado fisicamente, desesperado diante de um mundo que se anunciava em tom francamente pessimista.
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quinta-feira, 25 de julho de 2013

A mulher mais linda da cidade - Charles Bukowski


Das 5 irmãs, Cass era a mais moça e a mais bela. E a mais linda mulher da cidade. Mestiça de índia, de corpo flexível, estranho, sinuoso que nem cobra e fogoso como os olhos: um fogaréu vivo ambulante. Espírito impaciente para romper o molde incapaz de retê-lo. Os cabelos pretos, longos e sedosos, ondulavam e balançavam ao andar. Sempre muito animada ou então deprimida, com Cass não havia esse negócio de meio termo. Segundo alguns, era louca. Opinião de apáticos. Que jamais poderiam compreendê-la. Para os homens, parecia apenas uma máquina de fazer sexo e pouco estavam ligando para a possibilidade de que fosse maluca. E passava a vida a dançar, a namorar e beijar. Mas, salvo raras exceções, na hora agá sempre encontrava forma de sumir e deixar todo mundo na mão.
As irmãs a acusavam de desperdiçar sua beleza, de falta de tino; só que Cass não era boba e sabia muito bem o que queria: pintava, dançava, cantava, dedicava-se a trabalhos de argila e, quando alguém se feria, na carne ou no espírito, a pena que sentia era uma coisa vinda do fundo da alma. A mentalidade é que simplesmente destoava das demais: nada tinha de prática. Quando seus namorados ficavam atraídos por ela, as irmãs se enciumavam e se enfureciam, achando que não sabia aproveitá-los como mereciam. Costumava mostrar-se boazinha com os feios e revoltava-se contra os considerados bonitos — “uns frouxos”, dizia, “sem graça nenhuma. Pensam que basta ter orelhinhas perfeitas e nariz bem modelado… Tudo por fora e nada por dentro…” Quando perdia a paciência, chegava às raias da loucura; tinha um gênio que alguns qualificavam de insanidade mental.
O pai havia morrido alcoólatra e a mãe fugira de casa, abandonando as filhas. As meninas procuraram um parente, que resolveu interná-las num convento. Experiência nada interessante, sobretudo para Cass. As colegas eram muito ciumentas e teve que brigar com a maioria. Trazia marcas de lâmina de gilete por todo o braço esquerdo, de tanto se defender durante suas brigas. Guardava, inclusive, uma cicatriz indelével na face esquerda, que em vez de empanar-lhe a beleza, só servia para realçá-la.
Conheci Cass uma noite no West End Bar, Fazia vários dias que tinha saído do convento. Por ser a caçula entre as irmãs, fora a última a sair. Simplesmente entrou e sentou do meu lado. Eu era provavelmente o homem mais feio da cidade — o que bem pode ter contribuído.
— Quer um drinque? — perguntei.
— Claro, por que não?
Não creio que houvesse nada de especial na conversa que tivemos essa noite. Foi mais a impressão que causava. Tinha me escolhido e ponto final. Sem a menor coação. Gostou da bebida e tomou varias doses. Não parecia ser de maior idade, mas, não sei como, ninguém se recusava a servi-la. Talvez tivesse carteira de identidade falsa, sei lá. O certo é que toda vez que voltava do toalete para sentar do meu lado, me dava uma pontada de orgulho. Não só era a mais linda mulher da cidade como também das mais belas que vi em toda minha vida. Passei-lhe o braço pela cintura e dei-lhe um beijo.
— Me acha bonita? — perguntou.
— Lógico que acho, mas não é só isso… é mais que uma simples questão de beleza…
— As pessoas sempre me acusam de ser bonita. Acha mesmo que eu sou?
— Bonita não é bem o termo, e nem te faz justiça.
Cass meteu a mão na bolsa. Julguei que estivesse procurando um lenço. Mas tirou um longo grampo de chapéu. Antes que pudesse impedir, já tinha espetado o tal grampo, de lado, na ponta do nariz. Senti asco e horror.
Ela me olhou e riu.
— E agora, ainda me acha bonita? O que é que você acha agora, cara?
Puxei o grampo, estancando o sangue com o lenço que trazia no bolso. Diversas pessoas, inclusive o sujeito que atendia no balcão, tinham assistido a cena. Ele veio até a mesa:
— Olha — disse para Cass, — se fizer isso de novo, vai ter que dar o fora. Aqui ninguém gosta de drama.
— Ah, vai te foder, cara!
— É melhor não dar mais bebida pra ela — aconselhou o sujeito.
— Não tem perigo — prometi.
— O nariz é meu — protestou Cass, — faço dele o que bem entendo.
— Não faz, não — retruquei, — porque isso me dói.
— Quer dizer que eu cravo o grampo no nariz e você é que sente dor?
— Sinto, sim. Palavra.
— Está bem, pode deixar que eu não cravo mais. Fica sossegado.
Me beijou, ainda sorrindo e com o lenço encostado no nariz. Na hora de fechar o bar, fomos para onde eu morava. Tinha um pouco de cerveja na geladeira e ficamos lá sentados, conversando. E só então percebi que estava diante de uma criatura cheia de delicadeza e carinho. Que se traia sem se dar conta. Ao mesmo tempo que se encolhia numa mistura de insensatez e incoerência. Uma verdadeira preciosidade. Uma jóia, linda e espiritual. Talvez algum homem, uma coisa qualquer, um dia a destruísse para sempre. Fiquei torcendo para que não fosse eu.
Deitamos na cama e, depois que apaguei a luz, Cass perguntou:
— Quando é que você quer transar? Agora ou amanhã de manhã?
— Amanhã de manhã — respondi, — virando de costas pra ela.
No dia seguinte me levantei e fiz dois cafés. Levei o dela na cama.
Deu uma risada.                                     
— Você é o primeiro homem que conheço que não quis transar de noite.
— Deixa pra lá — retruquei, — a gente nem precisa disso.
— Não, pára aí, agora me deu vontade. Espera um pouco que não demoro.
Foi até o banheiro e voltou em seguida, com uma aparência simplesmente sensacional — os longos cabelos pretos brilhando, os olhos e a boca brilhando, aquilo brilhando… Mostrava o corpo com calma, como a coisa boa que era. Meteu-se em baixo do lençol.
— Vem de uma vez, gostosão.
Deitei na cama.
Beijava com entrega, mas sem se afobar. Passei-lhe as mãos pelo corpo todo, por entre os cabelos. Fui por cima. Era quente e apertada. Comecei a meter devagar, compassadamente, não querendo acabar logo. Os olhos dela encaravam, fixos, os meus.
— Qual é o teu nome? — perguntei.
— Porra, que diferença faz? — replicou.
Ri e continuei metendo. Mais tarde se vestiu e levei-a de carro de novo para o bar. Mas não foi nada fácil esquecê-la. Eu não andava trabalhando e dormi até às 2 da tarde. Depois levantei e li o jornal. Estava na banheira quando ela entrou com uma folhagem grande na mão — uma folha de inhame.
— Sabia que ia te encontrar no banho — disse, — por isso trouxe isto aqui pra cobrir esse teu troço aí, seu nudista.
E atirou a folha de inhame dentro da banheira.
— Como adivinhou que eu estava aqui?
— Adivinhando, ora.
Chegava quase sempre quando eu estava tomando banho. O horário podia variar, mas Cass raramente se enganava. E tinha todos os dias a folha de inhame. Depois a gente trepava.
Houve uma ou duas noites em que telefonou e tive que ir pagar a fiança para livrá-la da detenção por embriaguez ou desordem.
— Esses filhos da puta — disse ela, — só porque pagam umas biritas pensam que são donos da gente.
— Quem topa o convite já está comprando barulho.
— Imaginei que estivessem interessados em mim e não apenas no meu corpo.
— Eu estou interessado em você e também no seu corpo. Mas duvido muito que a maioria não se contente com o corpo.
Me ausentei seis meses da cidade, vagabundeei um pouco e acabei voltando. Não esqueci Cass, mas a gente havia discutido por algum motivo qualquer e me deu vontade de zanzar por aí. Quando cheguei, supus que tivesse sumido, mas nem fazia meia hora que estava sentado no West End Bar quando entrou e veio sentar do meu lado.
— Como é, seu sacana, pelo que vejo já voltou.
Pedi bebida para ela. Depois olhei. Estava com um vestido de gola fechada. Cass jamais tinha andado com um traje desses. E logo abaixo de cada olheira, espetados, havia dois grampos com ponta de vidro. Só dava para ver as pontas, mas os grampos, virados para baixo, estavam enterrados na carne do rosto.
— Porra, ainda não desistiu de estragar sua beleza?
— Que nada, seu bobo, agora é moda.
— Pirou de vez.
— Sabe que sinto saudade — comentou.
— Não tem mais ninguém no pedaço?
— Não, só você. Mas agora resolvi dar uma de puta. Cobro dez pratas. Pra você, porém, é de graça.
— Tira esses grampos daí.
— Negativo. É moda.
— Estão me deixando chateado.
— Tem certeza?
— Claro que tenho, pô.
Cass tirou os grampos devagar e guardou na bolsa.
— Por que é que faz tanta questão de esculhambar o teu rosto? — perguntei. — Quando vai se conformar com a idéia de ser bonita?
— Quando as pessoas pararem de pensar que é a única coisa que eu sou. Beleza não vale nada e depois não dura. Você nem sabe a sorte que tem de ser feio. Assim, quando alguém simpatiza contigo, já sabe que é por outra razão.
— Então tá. Sorte minha, né?
— Não que você seja feio. Os outros é que acham. Até que a tua cara é bacana.
— Muito obrigado.
Tomamos outro drinque.
— O que anda fazendo? — perguntou.
— Nada. Não há jeito de me interessar por coisa alguma. Falta de ânimo.
— Eu também. Se fosse mulher, podia ser puta.
— Acho que não ia gostar de um contato tão íntimo com tantos caras desconhecidos. Acaba enchendo.
— Puro fato, acaba enchendo mesmo. Tudo acaba enchendo.
Saímos juntos do bar. Na rua as pessoas ainda se espantavam com Cass. Continuava linda, talvez mais do que antes.
Fomos para o meu endereço. Abri uma garrafa de vinho e ficamos batendo papo. Entre nós dois a conversa sempre fluía espontânea. Ela falava um pouco, eu prestava atenção, e depois chegava a minha vez. Nosso diálogo era sempre assim, simples, sem esforço nenhum. Parecia que tínhamos segredos em comum. Quando se descobria um que valesse a pena, Cass dava aquela risada — da maneira que só ela sabia dar. Era como a alegria provocada por uma fogueira. Enquanto conversávamos, fomos nos beijando e aproximando cada vez mais. Ficamos com tesão e resolvemos ir para a cama, Foi então que Cass tirou o vestido de gola fechada e vi a horrenda cicatriz irregular no pescoço — grande e saliente.
— Puta que pariu, criatura — exclamei, já deitado. — Puta que pariu. Como é que você foi me fazer uma coisa dessas?
— Experimentei uma noite, com um caco de garrafa. Não gosta mais de mim? Deixei de ser bonita?
Puxei-a para a cama e dei-lhe um beijo na boca. Me empurrou para trás e riu.
— Tem homens que me pagam as dez pratas, aí tiro a roupa e desistem
de transar. E eu guardo o dinheiro pra mim. É engraçadíssimo.
— Se é — retruquei, — estou quase morrendo de tanto rir… Cass, sua cretina, eu amo você… mas pára com esse negócio de querer se destruir. Você é a mulher mais cheia de vida que já encontrei.
Beijamos de novo. Começou a chorar baixinho. Sentia-lhe as lágrimas no rosto. Aqueles longos cabelos pretos me cobriam as costas feito mortalha. Colamos os corpos e começamos a trepar, lenta, sombria e maravilhosamente bem.
Na manhã seguinte acordei com Cass já em pé, preparando o café. Dava a impressão de estar perfeitamente calma e feliz. Até cantarolava. Fiquei ali deitado, contente com a felicidade dela. Por fim veio até a cama e me sacudiu.
— Levanta, cafajeste! Joga um pouco de água fria nessa cara e nessa pica e vem participar da festa!
Naquele dia convidei-a para ir à praia de carro. Como estávamos na metade da semana e o verão ainda não tinha chegado, encontramos tudo maravilhosamente deserto. Ratos de praia, com a roupa em farrapos, dormiam espalhados pelo gramado longe da areia. Outros, sentados em bancos de pedra, dividiam uma garrafa de bebida tristonha. Gaivotas esvoaçavam no ar, descuidadas e no entanto aturdidas. Velhinhas de seus 70 ou 80 anos, lado a lado nos bancos, comentavam a venda de imóveis herdados de maridos mortos há muito tempo, vitimados pelo ritmo e estupidez da sobrevivência. Por causa de tudo isso, respirava-se uma atmosfera de paz e ficamos andando, para cima e para baixo, deitando e espreguiçando-nos na relva, sem falar quase nada. Com aquela sensação simplesmente gostosa de estar juntos. Comprei sanduíches, batata frita e uns copos de bebida e nos deixamos ficar sentados, comendo na areia. Depois me abracei a Cass e dormimos encostados um no outro durante quase uma hora. Não sei por quê, mas foi melhor do que se tivessemos transado. Quando acordamos, voltamos de carro para onde eu morava e fiz o jantar. Jantamos e sugeri que fossemos para a cama. Cass hesitou um bocado de tempo, me olhando, e ao respondeu, pensativa:
— Não.
Levei-a outra vez até o bar, paguei-lhe um drinque e vim-me embora. No dia seguinte encontrei serviço como empacotador numa fábrica e passei o resto da semana trabalhando. Andava cansado demais para cogitar de sair à noite, mas naquela sexta-feira acabei indo ao West End Bar. Sentei e esperei por Cass. Passaram-se horas. Depois que já estava bastante bêbado, o sujeito que atendia no balcão me disse:
— Uma pena o que houve com sua amiga.
— Pena por quê? — estranhei.
— Desculpe. Pensei que soubesse.
— Não.
— Se suicidou. Foi enterrada ontem.
— Enterrada? — repeti.
Estava com a sensação de que ela ia entrar a qualquer momento pela porta da rua. Como poderia estar morta?
— Sim, pelas irmãs.
— Se suicidou? Pode-se saber de que modo?
— Cortou a garganta.
— Ah. Me dá outra dose.
Bebi até a hora de fechar. Cass, a mais bela das 5 irmãs, a mais linda mulher da cidade. Consegui ir dirigindo até onde morava. Não parava de pensar. Deveria ter insistido para que ficasse comigo em vez de aceitar aquele “não”. Todo o seu jeito era de quem gostava de mim. Eu é que simplesmente tinha bancado o durão, decerto por preguiça, por ser desligado demais. Merecia a minha morte e a dela. Era um cão. Não, para que pôr a culpa nos cães? Levantei, encontrei uma garrafa de vinho e bebi quase inteira. Cass, a garota mais linda da cidade, morta aos vinte anos.
Lá fora, na rua, alguém buzinou dentro de um carro. Uma buzina fortíssima, insistente. Bati a garrafa com força e gritei:
— Merda! Pára com isso, seu filho da puta!
A noite foi ficando cada vez mais escura e eu não podia fazer mais nada.

(In. A mulher mais linda da cidade e outras histórias. Porto Alegre: LP&M, 2012, p.5-12).

quarta-feira, 24 de julho de 2013

Documentário: Imagens do inconsciente, "Em busca do espaço cotidiano" - Fernando Diniz


Nise da Silveira - Do mundo da Caralâmpia à emoção de lidar


Entrevista com a Dra. Nise da Silveira, realizada em 03 e 04 de agosto 1992 por Gonzaga Leal e Rubem Rocha Filho. Nesta entrevista, Nise fala das suas inquietações, das suas filiações teóricas e de sua experiência na relação com a loucura, com o desassossego, com a dor humana e com a instituição psiquiátrica. Se remete a Antonin Artaud e Jung como mestres decisivos na formulação do seu campo conceitual teórico-prático no manejo da clínica da psicose. Interroga a psiquiatria clássica ao mesmo tempo em que aponta a sua aliança com a anti-psiquiatria e com artistas pertencentes as mais diversas linguagens. Atrevida que era, utilizou o animal como co-terapeutas, desafiando o status quo da tradição psiquiátrica, o que veio fortalecer um dos seus conceitos de maior força e potência por ela desenvolvidos, O AFETO CATALIZADOR. Durante todo o percurso da entrevista Nise deixa claro o seu sonho desde pequena -- apaziguar o sofrimento humano. Conciliando ternura, firmeza de convicções, sensibilidade e rigor teórico, Nise esteve a frente do seu tempo, sendo responsável pela idealização e criação de dois espaços de clínica e de pesquisa de maior referência mundial, o MUSEU DE IMAGENS DO INCONSCIENTE, e a CASA DAS PALMEIRAS, instituição para pacientes egressos de clínicas psiquiátricas antecipando-se em mais de 30 anos ao que hoje modernamente chama-se CAPS -- CENTROS DE ATENÇÃO PSICO-SOCIAL.

Parte I:

Parte II:

Parte III:

segunda-feira, 22 de julho de 2013

Holocausto brasileiro - Daniela Arbex (trecho)

"Antônio Gomes da Silva, sessenta e oito anos, foi um dos pacientes encaminhados para o hospital, aos vinte e cinco anos. Há poucos registros sobre o passado de Cabo, como Antônio foi apelidado. O que se conta sobre ele é que o desemprego se somou à bebedeira em sua prisão. Hoje, passados mais de quarenta anos do episódio, o Cabo não sabe mais o motivo pelo qual foi mandado para o Colônia pela caneta de um delegado no dia 3 de janeiro de 1969.
- Não sei por que me prenderam. Cada um fala uma coisa. Mas, depois que perdi meu emprego, tudo se descontrolou. Da cadeia, me mandaram para o hospital, onde eu ficava pelado, embora houvesse muita roupa na lavanderia. Vinha tudo num caminhão, mas acho que eles queriam economizar. No começo, incomodava ficar nu, mas com o tempo a gente se acostumava. Se existe inferno, o Colônia era esse lugar.
Antônio fala baixo, quase como se não quisesse lembrar. Tem o rosto apoiado às mãos, e, apesar da estatura alta, parece querer esconder-se de si mesmo. Dentro da unidade, manteve-se calado durante vinte e um dos trinta e quatro anos em que ficou internado. Considerado mudo, soltou a voz, um dia, ao ouvir a banda de música do 9 Batalhão da Polícia Militar.
- Por que você não me disse que falava? - perguntou um funcionário da unidade, surpreso com a novidade.
- Uai, ninguém nunca perguntou.
Cabo também passou a vida assinando documentos com as digitais. Até descobrirem que ele sabia escrever o próprio nome. Deixou o hospital em 2003, para morar numa residência terapêutica de Barbacena, uma das vinte e oito casas mantidas pela prefeitura da cidade em parceria com a ONG Instituto Bom Pastor.
Quando se viu fora dos muros do hospital, não sabia como sobreviver sem amarras.
- A que horas as luzes se apagam aqui? - perguntou na primeira noite liberto do cativeiro.
Retirado do convíviio social por quase meio século, ele jamais poderia imaginar que agora era o dono do seu tempo e que tinha ele mesmo o poder de clarear ou escurecer o ambiente com um simples toque do interruptor. Além de nunca ter visto um apagador de luz, ser dono de si era uma novidade para quem viveu décadas de instituicionalização. Para Antônio, no entanto, se desvenciliar do Colônia foi tão difícil quanto mudar de endereço. O hospital estava ali, marcado não só em seu corpo, mas também impregnado na sua alma. Por isso, os pesadelos tornavam seu sono sobressaltado e se repetiam noite após noite. Acordava com o suor umedecendo o pijama e sempre com a mesma sensação de terror. Olhava ao redor para ver onde estava e descobria que os eletrochoques com os quais sonhava ainda o mantinham prisioneiro do Colônia.
Recordava-se sempre do início das sessões, quando era segurado pelas mãos e pelos pés para que fosse amarrado ao leito. Os gritos de medo eram calados pela borracha colocada à força entre os lábios, única maneira de garantir que não tivesse a língua cirtada durante as descargas elétricas. O que acontecia após o choque Cabo não sabia. Perdia a consciência, quando o castigo lhe era aplicado".
(In. Holocausto brasileiro.Daniela Arbex. São Paulo: Geração Editorial, 2013, p.30-35).
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Booktrailer do livro:
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"Em nome da razão", documentário de Helvécio  Ratton sobre o "Colônia":

quarta-feira, 3 de julho de 2013

Eu não possuo o meu corpo - Fernando Pessoa

Eu não possuo o meu corpo - como posso eu possuir
com ele? Eu não possuo a minha alma - como posso
possuir com ela? Não compreendo o meu espírito -
como através dele compreender?
Não possuímos nem o corpo, nem uma verdade - nem sequer uma ilusão. Somos fantasmas de mentiras,
sombras de ilusões, e a nossa vida é oca por fora e por
dentro.
Conhece alquém as fronteiras à sua alma, para que
possa dizer - eu sou eu?
Mas eu sei que o que sinto, sinto-o eu.
Quando outrem possui esse corpo, possui nele o
mesmo que eu? Não. Possui outra sensação.
Possuímos nós alguma coisa? Se nós não sabemos o que
somos, como sabemos nós o que possuímos?
Se do que comes, dissesses, "eu possuo isto", eu
compreendia-te. Porque sem dúvida o que comes, tu o
inclues em ti, tu o transformas em matéria tua, tu o
sentes entrar em ti e pertencer-te. Mas do que comes
não falas tu de "posse". A que chamas tu possuir?

(In. Fernando Pessoa. Quando fui outro. Rio de Janeiro: Objetiva: 2011, p.51).


Há doenças piores que as doenças - Fernando Pessoa

Há doenças piores que as doenças,
Há dores que não doem, nem na alma
Mas que são dolorosas mais que as outras.
Há angústias sonhadas mais reais
Que as que a vida nos traz, há sensações
Sentidas só com imaginá-las
Que são mais nossas do que a própria vida,
Há tanta coisa que, sem existir,
Existe, existe demoradamente,
E demoradamente é nossa e nós...
Por sobre o verde turvo do amplo rio
Os circunflexos brancos das gaivotas...
Por sobre a alma o adejar inútil
Do que não foi, nem pôde ser, e é tudo.
Dá-me mais vinho, porque a vida é nada.

(In. Quando fui outro. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011, p. 50).

sexta-feira, 28 de junho de 2013

Guimarães Rosa para Aracy

"A Aracy, minha mulher, Ara, pertence esse livro" -
(em Grande Sertão Veredas).
*
"Sinto e tenho necessidade tremenda de sentir o amor como cousa NÃO HUMANO, SUPER-HUMANA, sublime, acima de tudo merecendo todos os sacrifícios, mesmo os mais inauditos. Sempre precisei, disto. Isto ou nada. 'Ou a perfeição, ou a pândega!' Não me satisfaria um amor burguês, morno, conformado, dosado, raciocinando sobre conveniências ou inconveniências. Quando conheci você, estava já descrente de encontrar a mulher que seria a MINHA, capaz de sentir como eu e amar assim." 
 [Bogotá, 24/03/1943].
*
“Antes e depois, beijar, longamente, a tua boquinha. Essa tua boca sensual e perversamente bonita, expressiva, quente, sabida, sabidíssima, suavíssima, ousada, ávida, requintada, ‘rafinierte’, gulosa, pecadora, especialista, perfumada, gostosa, tão gostosa como você toda inteira, meu anjo de Aracy bonita, muito minha, dona do meu coração.”
*

Serás tudo para mim: mulher, amante, amiga e companheira. Sim, querida, hás de ajudar-me, a escrever os nossos livros. Não só passarás à máquina que eu escrever, como poderás auxiliar-me muito. Tu mesma não sabes o que vales. Eu sei, e sempre disse, que tens extraordinário gosto, para julgar coisas escritas. Muito bom gosto e bom senso crítico. Serás, além de inspiradora, uma colaboradora valiosa, apesar ou talvez mesmo por não teres pretensões de ‘literata pedante'. E estaremos sempre juntos, leremos juntos, passearemos juntos, nos divertiremos juntos..."
[6/11/1946].
*
“Os outros eu conheci por ocioso acaso. A ti vim encontrar porque era preciso.”
 




Mais sobre Aracy Guimarães Rosa nos links:

 

quarta-feira, 19 de junho de 2013

Ruína - Manoel de Barros

Fauno, cavalo e pássaro - Picasso

Um monge descabelado me disse no caminho: "Eu
queria construir uma ruína. Embora eu saiba que ruína é uma desconstrução. Minha idéia era de fazer alguma coisa ao jeito de tapera. Alguma coisa que servisse para abrigar o abandono, como as taperas abrigam. Porque o abandono pode não ser apenas de um homem debaixo da ponte, mas pode ser também de um gato no beco ou de uma criança presa num cubículo. O abandono pode ser também de uma expressão que tenha entrado para o arcaico ou mesmo de uma palavra. Uma palavra que esteja sem ninguém dentro. (O olho do monge estava perto de ser um canto.) Continuou: digamos a palavra AMOR. A palavra amor está quase vazia. Não tem gente dentro dela. Queria construir uma ruína para a palavra amor. Talvez ela renascesse das ruínas, como o lírio pode nascer de um monturo". E o monge se calou descabelado.
(In. Poesia completa. São Paulo: Leya, 2010, p.385-6).

Cartaz das XII Jornadas da FCCLRJ - "O amor e suas Letras".

"A maior riqueza do homem é a sua incompletude..." - Manoel de Barros


A maior riqueza do homem é a sua incompletude.
Nesse ponto sou abastado.
Palavras que me aceitam como sou - eu não
aceito.
Não aguento ser apenas um sujeito que abre
portas, que puxa válvulas, que olha o relógio, que
compra pão às 6 horas da tarde, que vai lá fora,
que aponta lápis, que vê a uva etc.etc.
Perdoai.
Mas eu preciso ser Outros.
Eu penso renovar o homem usando borboletas.

(In. Poesia completa. São Paulo: Leya, 2010, p.374).


terça-feira, 18 de junho de 2013

"...as colinas de meu corpo..." - Manoel de Barros


Para quem guardei na minha carne
As cicatrizes das batalhas perdidas? E os sulcos
Regados pelas chuvas de abril? Para que
Guardei as colinas do meu corpo? Senão
Para ele caminhar... E as mãos de aurora
Senão para ele acariciar? E meus cabelos negros?
Ai, não sei (...).
Estou, como pétalas noturnas,
Para os astros. Minha boca silenciosa.
Ficarei inclinada levemente para ele
Como torre. Inclinada para sua violência.
Ele me fará frutificar como as árvores na chuva.
Florescer entre pedras, aves e astros. Abrir-me
Como as rosas da noite, ao luar.
Ele terá o meu corpo, minha vida, meus sonhos.
Ele terá minhas cicatrizes.
E as colinas de meu corpo. Lívida,
Lívida ele me possuirá.


(In. Poesia completa. São Paulo: Leya, 2010, p. 52-3).


segunda-feira, 17 de junho de 2013

Entrada - Manoel de Barros

"Distâncias somavam a gente para menos. Nossa morada estava tão perto do abandono que dava até para a gente pegar nele. Eu conversava bobagens profundas com os sapos, com as águas e com as árvores. Meu avô abastexcia a solidão. A natureza avançava nas minhas palavras tipo assim: O dia está frondoso em borboletas. No amanhecer o sol põe glórias no meu olho. O cinzento da tarde me empobrece. E o rio encosta as margens na minha voz. Essa fusão com a natureza tirava de mim a liberdade de pensar. Eu queria que as garças me sonhassem. Eu queria que as palavras me gorjeassem. Então comecei a fazer desenhos verbais de imagens. Me dei bem (...). Acho-os como os impossíveis verossímeis de nosso mestre Artistóteles. Dou quatro exemplos: 1) É nos loucos que grassam luarais; 2) Eu queria crescer pra passarinho; 3) Sapo é um pedaço de chão que pula; 4) Poesia é a infância da língua. Sei que os meus desenhos verbais nada significam. Nada. Mas se o nada desaparecer a poesia acaba. Eu sei. Sobre o nada tenho profundidades"

(In. Manoel de Barros. Poesia Completa. São Paulo: Leya, 2010, p.7).

domingo, 16 de junho de 2013

Tímida pessoinha - Graciliano Ramos escreve sobre Nise da Silveira

 
"Chamaram-me da porta: uma das mulheres recolhidas à sala 4 desejava falar comigo. Estranhei. Quem seria? E onde ficava a sala 4? Um sujeito conduziu-me ao fim da plataforma, subiu o corrimão e daí, com agilidade forte, galgou uma janela. Esteve alguns minutos conversando, gesticulando, pulou no chão e convidou-me a substituí-lo. Que? Trepar-me àquelas alturas, com tamancos?
Examinei a distância, receoso, descalcei-me, resolvi tentar a difícil acrobacia. A desconhecida amiga exigia de mim um sacrifício; a perna, estragada na operação, movia-se lenta e perra; se me desequilibrasse, iria esborrachar-me no pavimento inferior. Não houve desastre. Numa passada larga, atingi o vão da janela; agarrei-me aos varões de ferro, olhei o exterior, zonzo, sem perceber direito porque me achava ali. Uma voz chegou-me, fraca, mas no primeiro instante não atinei com a pessoa que falava. Enxerguei o pátio, o vestíbulo, a escada já vista no dia anterior. No patamar, abaixo de meu observatório, uma cortina de lona ocultava a Praça Vermelha. Junto, à direita, além de uma grade larga, distingui afinal uma senhora pálida e magra, de olhos fixos, arregalados. O rosto moço revelava fadiga, aos cabelos negros misturavam-se alguns fios grisalhos. Referiu-se a Maceió, apresentou-se:
- Nise da Silveira.
Noutro lugar o encontro me daria prazer. O que senti foi surpresa, lamentei ver minha conterrânea fora do mundo, longe da profissão, do hospital, dos seus queridos loucos. Sabia-se culta e boa, Rachel de Queiroz me afirmara a grandeza moral daquela pessoinha tímida, sempre a esquivar-se, a reduzir-se, como a escusar-se de tomar espaço. Nunca me havia aparecido criatura mais simpática. O marido, também médico, era meu velho conhecido Mário Magalhães. Pedi notícias dele: estava em liberdade. E calei-me, num vivo constrangimento.
De pijama, sem sapatos, seguro à verga preta, achei-me ridículo e vazio; certamente causava impressão muito infeliz. Nise, acanhada, tinha um sorriso doce, fitava-me os bugalhos enormes, e isto me agravava a perturbação, magnetizava-me. Balbuciou imprecisões, guardou silêncio, provavelmente se arrependeu de me haver convidado para deixar-me assim confuso".
 
(Publicado originalmente no livro "Memórias do cárcere", de 1953. In. Encontros: Nise da Silveira. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009, p.202-3).
 
 
Obs: Nise da Silveira foi presa pelo governo Vargas em 1936, durante a Intentona Comunista; foi denunciada por uma enfermeira do Hospital Psiquiátrico que havia encontrado em seu quarto livros comunistas. Capturada no momento em que trabalhava, chegou na prisão ainda vestindo o jaleco branco. Ficou na mesma cela em que estava Olga Benário, e na mesma prisão em que estava Graciliano Ramos, em sala contígua. Foi solta um ano e meio depois.
 
Página da Wikipédia sobre Nise:
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Site do Museu de Imagens do Inconsciente:
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Nise- vida e obra. Site do Centro Nacional de Saúde:
 
 

segunda-feira, 10 de junho de 2013

Nasci na América - Isadora Duncan

 
Nasci na América, na cidade de São Francisco, no dia em que lá rebentou uma revolução. A revolução, naturalmente, era "dourada"; era um dia "dourado" quando todos os bancos em São Francisco foram à falência. Multidões enfurecidas vociferavam nas ruas. No dia daquela catástrofe, minha mãe esperava meu nascimento de uma hora para outra. Mais tarde ela me disse que tinha certeza de que a criança que esperava seria alguém extraordinário. Acontece que meu pai estava envolvido na catástrofe dos banqueiros. Nossa casa foi rodeada de um multidão ameaçadora, e minha mãe teve certeza de que toda essa preocupação, excitação emedo teria algum efeito na criança que estava esperando. Por isso acreditava que eu seria algo extraordinário.
Depois daqueles dias tempestuosos minha mãe foi abandonada ao seu destino com quatro criancinhas nas mãos. Embora fosse uma mulher instruída, praticamente não conseguia ganhar um pedaço de pão para si e as crianças, dando aulas de música. Ganhava pouco, e não o bastante para nos alimentar. Sempre que recordo minha infância, vejo diante de mim uma casa vazia. Com minha mãe, dando aulas, nós crianças ficávamos sentadas sozinhas, em geral com fome, e nos invernos em geral com frio.
Mas embora nossa mãe não pudesse nos dar bastante alimento físico, dava-nos suficiente alimento espiritual. Quando tocava Schubert e Beethoven para nós, ou lia trechos de Shakespeare e Shelley e Browning, esquecíamos nossa fome e frio.
Na infância, não tive brinquedos ou brincadeiras de criança. Muitas vezes fugia sozinha para as florestas ou à praia junto ao mar, e lá dançava. Sentia que meus sapatos e roupas apenas me estorvavam. Meus sapatos pesados eram como correntes; minhas roupas eram minha prisão. Por isso, eu tirava tudo. E sem olhos me espiando, inteiramente só, eu dançava nua diante do mar. E parecia-me que o mar e todas as árvores dançavam comigo.
Como minha mãe fosse muito pobre, e frequentemente nos faltasse dinheiro até para as coisas mais necessárias, nossos vizinhos - sabendo da minha habilidade para dançar - insistiam com minha mãe que me fizesse dançar em público, para eu poder ganhar dinheiro. E assim, por necessidade, eu, uma menininha de quatro anos, fui forçada a dançar diante do público. Por isso não gosto que crianças dancem diante do público por dinheiro, porque eu própria sei o que significa, dançar em troca de um pedaço de pão".
 
 
(In. Isadora Duncan - Fragmentos autobiográficos. Porto Alegre: LP&M, 1985, p. 23-4).


sábado, 1 de junho de 2013

Eu a amava - Anna Gavalda (trechos favoritos)

 
"Quanto tempo é preciso para esquecer o cheiro de quem nos amou? E quando a gente deixa de amar? Que me dêem uma ampulheta" - (P.28).
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"Eu ia protestar, mas ele me olhou bravo e pôs um dedo diante da boca. Pierre Dippel é um homem que não gosta de ser contrariado.
- A gente tem sempre que obedecer o senhor, não é?
Ele não me escutava.
- Será que um dia alguém já ousou contradizê-lo? (...).
- Alguém não. A minha vida inteira" - (p.56).
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"- Mas nós somos uma grande ocasião, Chloé. Nós somos a melhor ocasião do mundo" - (p. 57).
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" - Amei-a mais do que tudo. Mais do que tudo...
Eu não sabia que se podia amar a tal ponto...Enfim, eu, em todo caso, achava que eu não estava...programado para amar daquela maneira. As declarações, as insônias, os estragos da paixão, aquilo tudo era bom para os outros. Aliás, a simples palavra paixão me fazia rir. A paixão, a paixão! Eu punha aquilo entre a hipnose e superstição...Era quase um palavrão na minha boca. E aí, aquilo caiu sobre mim na hora em que eu menos esperava. Eu...Eu amei uma mulher.
Me apaixonei como se pega uma doença. Sem querer, sem acreditar, contra a minha vontade e sem poder me defender, e depois... (...)
- E depois a perdi. Da mesma maneira" - (p.82).
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"O que se espera da vida aos 42 anos?
Eu, nada. Não esperava nada. Eu trabalhava. Cada vez mais e sempre. Era a minha roupa de camuflagem, a minha armadura, o meu álibi. Meu álibi para não viver. Porque eu não gostava muito disso, de viver. Eu achava que não tinha jeito para isso.
Eu inventava dificuldades, montanhas a serem escaladas. Muito altas. Muito escarpadas. Depois arregaçava as mangas. Escalava-as e inventava outras. Mesmo assim eu não era ambicioso, eu era sem imaginação" - (p.83).
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"Eu tinha 42 anos de silêncio a recuperar, 42 anos em que eu me calava, que guardava tudo para mim (...). Por mais incrível que isso possa lhe parecer, acho que meu mutismo é antes timidez. Não gosto de mim o bastante para dar importância às minhas palavras" - (p.85).
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"Eu não gostava daquele apartamento (...).Eu vinha naquele apartamento para dormir, e porque minha família vivia nele. Ponto" - (p.87).
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"Não queria mais que ela existisse. Não podia mais me virar para ela. Queria que ela desaparecesse num buraco de camundongo e queria desaparecer junto com ela. E quanto mais a igonorava, mais ficava apaixonado. Era exatamente como eu dizia há pouco, como uma doença. Sabe como isso acontece... Você espirra. Uma vez. Duas vezes. Você sente um arrepio e pornto. É tarde demais. O mal está feito. Ali, era a mesma coisa: eu estava preso, estava ferrado. Não havia mais esperança alguma..." - (p.112).
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"Durante alguns dias, eu tinha sido eu mesmo. Nem mais, nem menos que eu mesmo. Quando estava com ela, tinha a impressão de ser um sujeito legal...Era simples assim. Eu não sabia que podia ser um sujeito legal' - (p.120).
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"Eu estava confiante. Estava cheio de energia. Acho que estava muito feliz naquela época da minha vida porque, mesmo que não estivesse com ela, eu sabia que ela existia. já era inesperado" - (p.121).
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" - E quando tomei o avião de volta, pela primeira vez em minha vida não tive medo. Eu pensava: ele pode explodir, pode cair feito uma pedra e se arrebentar, não faz mal.
- Por que o senhor pensava isso?
- Por quê?
- É. Por quê?...Eu teria pensado o contrário...Eu teri pensado: "Agora sei realmente por que tenho medo e é melhor a porra desse avião não cair!".
- É, você tem razão. Teria sido mais esperto...Pois é, e tocamos aqui no xis do problema, eu não pensava isso. Eu devia quase até desejar que ele caísse...Minha vida teria ficado tão mais simples..." - (p.126).
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"O casamento, a família, o trabalho, os meandros da vida social, tudo. Atravessei tudo de cabeça baixa e com os dentes cerrados. Apreendi tudo com desconfiança" - (p.127-8).
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"...me achava velho. Pensava que era o fim do percurso. Um fim ensolarado...Eu pensava: "Não precipitemos nada, ela é tão jovem, ela é que irá embora primeiro", e, cada vez que a encontrava, ficava maravilhado mas surpreso também. Como? Ela ainda está aqui? Mas por quê? Eu via mal o que ela amava em mim, eu me dizia: "Pra que bagunçar tudo, já que é ela que vai me deixar?". Era obrigatório, era fatal. Não havia nenhuma razão para que ela estivesse ali na próxima vez, nenhuma razão...Afinal, eu acabava até desejando que não estivesse. Até então, a Vida tinha se encarregado tão bem de decidir tudo em meu lugar, por que haveria de mudar? Por quê? Eu havia de qualquer modo provado que não tinha jeito para assumir as coisas...Na minha profissão, sim, era um jogo e eu era o melhor, mas e quanto ao resto? Eu prefiria não decidir, preferia me consolar lembrando que não era eu quem decidia. Preferia sonhar ou lamentar. Era tão mais simples...
Minha tia-avó paterna, que era russa, sempre me dizia:
- Você é igual ao seu pai, você tem saudade das montanhas.
- De que montanhas, Mouchka? - eu perguntava.
- Ora! Daquelas que você não conheceu" - (p.148-9).
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"- Pois eu acho que a gente combina...Gosto de estar com você porque nunca me entedio. Mesmo quando a gente não se fala, mesmo quando a gente não se toca, mesmo quando não estamos no mesmo quarto, eu não me entedio. Não me entedio nunca. Acho que é porque tenho confiança em você, tenho confiança em seus pensamentos. Você pode entender isso? Tudo o que eu vejo em você, e tudo o que eu não vejo, eu amo. E no entanto eu conheço os seus defeitos. Mas justamente, tenho a impressão de que os meus defeitos combinam com as suas qualidades. Nós não temos medo das mesmas coisas. Até os nossos demônios cimbinam. Você vale mais do que mostra e comigo é o contrário. Eu preciso do seu olhar para ter um pouco mais de...matéria? Como se diz em francês? Constância? Quando se quer dizer que alguém é interessane por dentro?
- Profundidade?
- É isso! Eu sou como uma pipa, se ninguém segura o carretel, pfft, eu saio voando...E você, é engraçado, penso sempre que você é forte o bastante para me segurar e inteligente o bastante para me deixar escapulir...
- Por que você está me dizendo isso tudo?
- Quero que você saiba.
- Por que agora?
- Sei lá...Não é incrível encontrar alguém e pensar: com essa pessoa, eu estou bem.
- Mas por que você está me dizendo isso agora?
- Por que às vezes tenho a impressão que você não se dá conta da sorte que nós temos..." - (p.156-7).
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"Os olhos semicerrados e o coração saindo pela boca, eu pensava no desastre que tinha sido a minha vida. A felicidade estava ali e eu a havia deixado passar para não complicar a existência" (p.161).
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"- Será que aquela menininha teimosa não teria preferido viver com um pai mais feliz?" - (p.170).
 
(Eu a amava. Ana Gavalda. Rio de Janeiro: Record, 2002).
 
Trailer do filme baseado no livro:
 
Imagens do filme: