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terça-feira, 27 de agosto de 2013

Diário de luto - Roland Barthes (trechos)

"Irritação. Não, o luto (a depressão) é bem diferente de uma doença. De que desejam curar-me? Para encontrar que estado, que vida? Se há trabalho, aquele que nascer dele não será um ser comum, mas um ser moral, um sujeito do valor - e não da integração" (p.8).
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"Solidão = não ter ninguém em casa a quem dizer: voltarei a tantas horas, ou a quem poder telefonar (dizer): pronto, cheguei" - (p.42).
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"Meu espanto - e, por assim dizer, minha inquietude (meu mal-estar) vem do fato de que, na verdade, não é uma falta (não posso descrever isso como uma falta, minha vida não está desorganizada), mas uma ferida, algo que dói no coração do amor" - (p.63).
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"Frio, noite, inverno. Estou aquecido, porém sozinho. E compreendo que será preciso habituar-me a estar naturalmente nesta solidão, nela agir, trabalhar, acompanhado, colado à "presença da ausência" - (p. 67).
"Não posso suportar que reduzam - que generalizem - meu pesar (...) é como se o roubassem de mim" - (p.69).
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"O Irremediável é, ao mesmo tempo, o que me dilacera e o que me contém..." - (p.87).
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"Recomeçar sem descanso. Sísifo" - (p.136).
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Em mim, lutam a morte e a vida (descontinuidade e como que ambiguidade do luto) (quem vencerá?) - mas, por enquanto, uma vida boba (pequenas ocupações, pequenos interesses, pequenos encontros).
O problema dialético é que a luta desemboque numa vida inteligente, e não uma vida-écran" - (p. 147).
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"Luto.
Impossibilidade - indignidade - de confiar a uma droga - sob pretexto de depressão - o sofrimento, como se ele fosse uma doença, uma "possessão" - uma alienação (algo que nos torna estrangeiros) - enquanto ele é um bem essencial, íntimo..." - (p. 159).
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"Habito minha tristeza e isso me faz feliz.
Tudo o que me impede de habitar minha tristeza é insuportável para mim" - (p.169).
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"Continuo (dolorosamente) espantado de poder - finalmente - viver com minha tristeza, o que quer dizer, literalmente, que ela é suportável. Mas - sem dúvida - é porque posso, bem ou mal (isto é, com o sentimento de não o conseguir) dizê-la, fraseá-la. Minha cultura, meu gosto pela escrita me dá esse poder apotropaico, ou de integração: integro, pela linguagem.
Minha tristeza é inexprimível mas, apesar de tudo, dizível. O próprio fato de que a língua me fornece a palavra "intolerável" realiza, imediatamente, certa tolerância" - (p. 171).
 
(In. Diário de Luto. Roland Barthes. São Paulo: Martins Fontes, 2011).
 


Fahrenheit 451 - Ray Bradbury (trechos favoritos)


"O rosto de Clarisse, agora voltado para ele, era um frágil cristal leitoso dotado de uma luz suave e constante. Não era a luz histérica da eletricidade, mas... o quê? A luz estranhamente aconchegante e rara e levemente agradável de uma vela. Certa vez, quando criança, durante uma queda de energia, sua mãe havia encontrado e acendido uma última vela e houve um breve instante de redescoberta, de uma iluminação tal que o espaço perdera suas vastas dimensões e se fechara aconchegante em torno deles, mãe e filho, a sós, transformados, torcendo para que a energia não voltasse tão cedo..." - (p.27).
"Lançou de novo o olhar à parede. Como o rosto dela se parecia também com um espelho! Impossível. Pois quantas pessoas seriam capazes de refletir a luz de uma outra? As pessoas quase sempre eram - procurou uma comparação, encontrou-a em seu ofício - archotes, que ardiam até se extinguir. Quantas pessoas existiam cujos rostos eram capazes de captar e devolver a expressão da outra, seus pensamentos e receios mais íntimos?...Quantos minutos haviam caminhado juntos? Três minutos? Cinco?"- (p.31).
"Escuridão. Não estava feliz. Não estava feliz. Disse as palavras a si mesmo. Admitiu que este era o verdadeiro estado das coisas. Usava sua felicidade como uma máscara e a garota fugira com ela pelo gramado e não havia como ir bater à sua porta para pedi-la de volta" - (p. 32).
"Bem, afinal de contas, estamos na era do lenço descartável. Assoe seu nariz numa pessoa, encha-a, esvazie-a, procure outra, assoe, encha, esvazie. Cada um está usando as fraldas da camisa do outro. Como torcer para o time da casa quando não se tem nem um programa nem sabemos os nomes? Por falar nisso, que camisa estão usando quando entram em campo?" - (p.38).
"Você não é como os outros. Eu vi alguns; eu sei. Quando eu falo, você olha para mim. Ontem à noite, quando eu disse uma coisa sobre a lua, você olhou para a lua. Os outros nunca fariam isso. Os outros continuariam andando e me deixariam falando sozinha. Ou me ameaçariam. Ninguém tem mais tempo para ninguém. Você é um dos poucos que me toleram. É por isso que eu acho tão estranho você ser bombeiro. É que, de algum modo, não combina com você" - (p. 45).
"Quem dera pudessem ter levado sua mente para uma lavagem a seco, esvaziado seus bolsos, e a tivessem vaporizado, limpado e remontado e a devolvessem pela manhã. Quem dera..." - (p.37).
"-Por que você não está na escola? Todo dia eu a vejo vagando por aí.
- Ah, eles não sentem a minha falta - disse ela. - Dizem que sou antissocial. Não me misturo. É tão estranho. Na verdade, eu sou muito social. Tudo depende do que você entende por social, não é? Social para mim significa conversar com você sobre coisas como esta. - Ela chacoalhou algumas castanhas que haviam caído da árvore do jardim da frente. - Ou falar sobre como o mundo é estranho. É agradável estar com as pessoas. Mas não vejo o que há de social em juntar um grupo de pessoas e depois não deixá-las falar, você não acha? (...) nunca fazemos perguntas; pelo menos a maioria não faz; eles passam as respostas para você, pim, pim, pim, e nós, sentados ali, assistindo a mais quatro horas de filmes educativos. Isso para mim não é nada social. Parece um monte de funis e muita água jorrando da torneira, entrando por um lado e saindo pelo outro, e depois eles vêm nos dizer que é vinho, quando não é" - (p.52).
"Como uma pessoa fica tão vazia?, perguntou a si mesmo. Quem esvazia a gente?" - (p.68).
"- Me deixe em paz - disse Mildred. - Eu não fiz nada.
- Deixar você em paz! Tudo bem, mas como eu posso ficar em paz? Não precisamos que nos deixem em paz. Precisamos realmente ser incomodados de vez em quando. Quanto tempo faz que você não é realmente incomodada? Por alguma coisa importante, por alguma coisa real?" - (p.76).
"Se não quiser um homem politicamente infeliz, não lhe dê os dois lados de uma questão para resolver; dê-lhe apenas um. Melhor ainda, não lhe dê nenhum. Deixe que ele se esqueça de que há uma coisa como a guerra (...). Encha as pessoas com dados incombustíveis, entupa-as tanto com os "fatos" que elas se sintam empanzinadas, mas absolutamente "brilhantes" quanto a informações. Assim, elas imaginarão que estão pensando, terão uma sensação de movimento sem sair do lugar. E ficarão felizes, porque fatos dessa ordem não mudam. Não as coloque em terreno movediço, como filosofia ou sociologia, com que comparar suas experiências. Aí reside a melancolia. Todo homem capaz de desmontar um telão de tevê e montá-lo novamente, e a maioria consegue, hoje em dia está mais feliz do que qualquer homem que tenta usar a régua de cálculo, medir e comparar o universo, que simplesmente não será medido ou comparado sem que o homem se sinta bestial e solitário. Eu sei porque já tentei. Para o inferno com isso! Portanto, que venham seus clubes e festas, seus acrobatas e mágicos, seus heróis, carros a jato, motogiroplanos, seu sexo e heroína, tudo o que tenha a ver com o reflexo condicionado. Se a peça for ruim, se o filme não disser nada, estimulem-me com o temerim, com muito barulho. Pensarei que estou reagindo à peça, quando se trata apenas de uma reação tátil à vibração. Mas não me importo. Tudo o que peço é um passatempo sólido" - (p.86-7).
"Ninguém mais presta atenção. Não posso falar com as paredes, porque elas estão gritando para mim. Não posso falar com a minha mulher; ela escuta as paredes. Eu só quero alguém para ouvir o que tenho a dizer. E talvez, se eu falar por tempo suficiente, minhas palavras façam sentido" - (p.109).
"Eu me agarrei firme ao mundo algum dia. Já pus um dedo nele; é um começo" - (p.197).
 
(In. Fahrenheit 451. Ray Bradbury. São Paulo: Globo, 2012).
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Sobre o livro:
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O filme de Truffaut no youtube:
 


segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Carta a D. - André Gorz (trechos).

"...carrego no fundo do meu peito um vazio devorador que somente o calor do seu corpo contra o meu é capaz de preencher" - (p.5).
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"Por mais que tivéssemos sido profundamente diferentes, eu não deixava de sentir que alguma coisa fundamental era comum a nós, um tipo de ferida original - há pouco eu falava de "experiência fundadora": a experiência da insegurança. A natureza desta não era a mesma para você e para mim. Não importa: para ambos, ela significava que não tínhamos um lugar assegurado no mundo, e só teríamos aquele que fizéssemos para nós" - (p.11).
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"Você estava condenada a ser forte porque todo o seu universo era precário. Eu sempre senti, ao mesmo tempo, a sua força e a sua fragilidade subjacente. Eu gostava da sua fragilidade superada, admirava sua força frágil. Nós éramos, eu e voc...ê, filhos da precariedade e do conflito. Fomos feitos para nos proteger mutuamente contra ambos, e precisávamos criar juntos, um pelo outro, o lugar no mundo que originalmente nos tinha sido negado" - (p.12).
"...o amor é o fascínio recíproco de duas pessoas por aquilo que elas têm de menos dizível, de menos socializável; de refratário aos papéis e imagens delas mesmas que a sociedade lhes impõe; aos pertencimentos culturais (...). Era isso: vo...cê havia me dado a possibilidade de escapar de mim mesmo e de me instalar num outro lugar, do qual você me trouxera a notícia (...). Você era quem punha entre parênteses esse mundo ameaçador, no qual eu era um refugiado de existência ilegítima (...). Até onde consigo lembrar, eu sempre procurei não existir. Você deve ter trabalhado anos a fio até me fazer assumir minha existência. E esse trabalho, estou certo disso, nunca se completou" - (p.16).
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"Tive muitas dificuldades com o amor (ao qual Sartre dedicou umas trinta páginas de O Ser e O Nada), pois é impossível explicar filosoficamente por que amamos e queremos ser amados por determinada pessoa, excluindo todas as outras.
Na época..., não procurei a resposta para tal questão na experiência que estava vivendo. Não descobri, como faço agora, qual era o alicerce do nosso amor. Nem que o fato de estar dolorosa e deliciosamente obcecado pela coincidência sempre prometida e evanescente do gosto que temos pelos nossos corpos - e quando digo corpo, não esqueço que "a alma é o corpo" tanto para Merleau-Ponty como para Sartre -, nos remete a experiências fundadoras cujas raízes estão mergulhadas na infância: na descoberta primeira, originária, das emoções que uma voz, um cheiro, uma cor de pele, um jeito de se mover e de ser, que serão para sempre a norma ideal, têm ressonância em mim. É isto: a paixão amorosa é um modo de entrar em ressonância com o outro, corpo e alma, e somente com ele ou com ela. Estamos aquém e além da filosofia" - (p.20).

(In. Carta a D. São Paulo: CosacNaify, 2012).
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André Gorz, jornalista austríaco radicado na França, reconhecido por seus trabalhos nas áreas de filosofia e sociologia, surpreendeu ao mundo ao escrever Carta a D., uma pungente declaração de amor a Dorine, sua companheira por quase sessenta anos. Dirigindo-se à mulher doente, Gorz relata a história de paixão, cumplicidade e militância (com propostas inovadoras no setor trabalhista e uma atuação pioneira em ecologia política) que os uniu para sempre desde que se conheceram em Lausanne, na Suíça, em outubro de 1947. Com o agravamento irremediável da doença de Dorine, os dois se suicidaram e seus corpos foram encontrados lado a lado em 24 de setembro de 2007.
 
 
 


sábado, 10 de agosto de 2013

Alô, Lacan? É claro que não - Jean Allouch (trechos).

 
*A Psicanálise, seu público e o estado.
Graças a uma lei que favorecia, dizia-se, a assimilação dos judeus, seu pai tinha optado por um sobrenome claramente francês. Ele, até aí, não se interessara por esta questão.
Mas eis que ela agora es...tá na ordem do dia em sua análise. Torna-se claro que se trata, para ele, de acrescentar a "seu" nome-próprio o nome de antes da decisão paterna. Ele se chamaria, doravante, Senhor X hífen Y.
Tratar-se-ia de uma veleidade? De fato, Lacan não lhe deixa tempo para hesitação. Presidindo então uma reunião da École freudienne durante a qual seu analisante deveria tomar a palavra, declara:
- Bom, passo agora a palavra a ... (seu nome) X-Y" - ( p.33).
*
*Casamento.
Ele levou muito tempo para se decidir.
Durante muitos meses, contara a Lacan sobre seu amor por XXX, falou dela, de sua relação com ela, de sua vida enfim, tinha analisado tudo, o porquê de sua escolha dela, a que seu nome remetia, etc.
Ele chega a sessão e diz:
- Eu ne caso na próxima semana.
Lacan:
- Com quem?" - ( p.37).
*
* Conjuração?
No tom irritado que é habitualmente o deste tipo de afirmação, ele diz:
- Puxa, sou uma besta.
Lacan:
- Não é porque você diz que não é verdade" - (p. 39).
*
*Deitar
- Sonhei que você ´propôs que eu deitasse e eu lhe dizia:
- Por que isso agora?
Lacan:
- Deite, meu caro" - (p. 42).
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* Dialética de uma intervenção
Jesuíta em análise com Lacan, ele faz parte da primeiríssima geração de alunos. Um dia, na sessão, fala de sua intenção de deixar a Companhia e se casar.
Lacan fez tudo para dissuadi-lo disso, chegando até a dizer-lhe que o supereu, no casamento, seria pior que na igreja.
Resultado? O analisante realiza sua decisão, mas de certa maneira: ficou convencido de que a tomara sozinho" - (p. 45).
*
*Go between?
Médico hindu, ele faz uma pequena análise com Lacan. No fim deste percurso, ousa perguntar:
- Você diz que uma carta sempre chega a seu destino. Ora, Althusser diz o contrário: acontece de uma carta não chegar a seu destinatário. O que você pensa de sua tese, que ele diz materialista?
Lacan, a se crer neste analisante, refletiu bons dez minutos antes de responder:
- Althusser não é praticante" - (p.60).

*
*Primeira sessão com Lacan.
Ela pede a Lacan retomar sua análise com ele, seu analista acaba de morrer, será enterrado naquele dia.
- Quando?
- Agora.
- Você não pretende ir ao enterro?...
- (ela, um pouco hesitante) - sim.
- Você dispõe de um meio de locomoção?
Uma velha 4L a espera, de fato, nas proximidades da Rue de Lille, 5, então, ela responde afirmativamente.
Depois, dirigindo-se a Glória:
- Glória, meu casaco!
Abandonando os clientes que se amontoavam na sala de espera e na biblioteca, eis Lacan em sua 4L, acompanhando-a ao enterro de seu ex-psicanalista. Foi assim a primeira sessão com Lacan" - (p.80).

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*Vidência
Na véspera de um de seus exames de medicina, ele diz a Lacan na sessão:
- Puxa, que noite!
Evocava assim, não sem ênfase, sua noite de trabalho? Ou de insônia, motivada por sua preocupação com o exame?
De toda forma, Lacan logo replicou:
- Leucemia?
Ele decide preparar a questão "leucemia";
No dia seguinte, na sala de exame, inquietação...
Pois bem, não! Não é leucemia que cai.
Mas logo se percebe que há erro: vai ser examinado numa outra sala; e lá, fato extraordinário, lhe é pedido exatamente "tratar" da leucemia!
O que ele fez. Brilhantemente.
Saída do exame. Ele vai a sua sessão. Com esta incrível questão: como Lacan pôde saber?
Resposta:
- É pura questão de lógica*
* lógica do significante: noite branca = leukos = leucemia?!" - (p.96).
*
*É simples.
A um doente que declara que seus convidados ouvem os maus pensamentos que lhe vêm a respeito deles:
- Você assim mesmo deve perceber um pouco que, se você pensa que os outros pensam que você pensa mal sobre eles, isto talvez seja simplesmente pelo fato de que você pense mal" - (p. 103).
*
*Prescrição no sentido certo.
O doente desenvolveu amplamente como, permanentemente, se sentia seguido.
Estamos agora no fim da apresentação, que Lacan termina dizendo a seu interlocutor, muito gentilmente:
- Bom, vamos agora indicar-lhe alguém que vai segui-lo" - (p. 110).
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*Topologia...ou geometria?
Há muito tempo Lacan já se apoiava na escrita topológica, a qual, sabe-se, é de outra ordem que a geometria.
Na época do borromeano, durante uma apresentação de doentes, tratou-se de círculo, isto - é claro - por... parte do doente. Este se definia, de fato, como centro solitário de um círculo solitário, o que não o impedia de também dizer que ele não tinha limites.
Lacan lhe fez um aparte sobre esta contradição:
- Um círculo tem bordas!
Resposta do doente:
- O senhor pensa em termos geométricos!" (p. 112).

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(Alô, Lacan? É claro que não. Jean Allouch. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1999).
 

 
 



 
 
 
 

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Que revolução será capaz de perturbar esta serenidade? - Graciliano Ramos

 
"Nas horas de serviço conseguia distrair-me. Os livros enormes de lombos de couro e folhas rotas, os ofícios, a campainha do telefone e o tique-taque das máquinas de escrever me arrastam para longe da terra. O que lá fora é bom, útil, verdadeiro ou belo não tem aqui nenhuma significação. Tudo é diferente. Respiramos um ar onde voam partículas de papel e de tinta e trabalhamos quase às escuras. A voz do diretor é doce, ranzinza e regulamentar. Se um funcionário comete falta, o diretor mostra o parágrafo e o artigo adequado ao caso. Sucede que o funcionário se defende apontando outro artigo. Aí o diretor perturba-se e descontenta-se: compreende que o serviço não vai bem, mas encolhe-se diante do regulamento e admira e receia o empregado que soube escapar-se nele. Movemo-nos como peças de um relógio cansado. As nossas rodas velhas, de dentes gastos, entrosam-se mal a outras rodas velhas, de dentes gastos. O que tem valor cá dentro são as coisas vagarosas, sonolentas. Se o maquinismo parasse, não daríamos por isto: continuaríamos com o bico da pena sobre a folha machucada e rota, o cigarro apagado entre os dentes amarelos. Deixaríamos de pestanejar, mas ignoraríamos a extinção dos movimentos escassos. Os rumores externos chegam-nos amortecidos. Que barulho, que revolução será capaz de perturbar esta serenidade?".
(Graciliano Ramos. Angústia. São Paulo: Círculo do Livro, 1988, p. 132).


domingo, 4 de agosto de 2013

Angústia - Graciliano Ramos (trecho)

 
"Como certos acontecimentos insignificantes tomam vulto, perturbam a gente! Vamos andando sem nada ver. O mundo é empastado e nevoento. Súbito uma coisa entre mil nos desperta a atenção e nos acompanha. Não sei se com os outros se dá o mesmo. Comigo é assim. Caminho como um cego, não poderia dizer por que me desvio para aqui e para ali. Frequentemente não me desvio - e são choques que me deixam atordoado: o pau do andaime derruba-me o chapéu, faz-me calombo na testa; a calçada foge-me dos pés como se tivesse encolhido de chofre; o automóvel para bruscamente a alguns centímetros de mim, com um barulho de ferragem, um raspar violento de borracha na pedra e um berro do chofer. Entro na realidade ceio de vergonha, prometo corrigir-me. "Perdão! Perdão!" digo às pessoas que me abalroam porque não me afastei do caminho. As pessoas vão para os seus negócios, nem se voltam, e eu me considero um sujeito mal-educado. Tenho a impressão de que estou cercado de inimigos, e como caminho devagar, noto que os outros têm demasiada pressa em pisar-me os pés e bater-me nos calcanhares. Quanto mais me vejo rodeado mais e isolo e entristeço. Quero recolher-me, afastar-me daqueles estranhos que não compreendo, ouvir o Currupaco, ler, escrever. A multidão é hostil e terrível. Raramente percebo qualquer coisa que se relacione comigo: um rosto bilioso e faminto de trabalhador sem emprego, um cochicho de gente nova que deseja ir para a cama, um choro de criança perdida. Às vezes isso me perturba, tira-me o sono (...) penso nos namorados que se atracam junto a uma vitrina, em posição incômoda, no operário que tem fome e ameaça o patrão, na criança que chora perdida, chamando a mamãezinha.. Tudo foi visto ou ouvido de relance, talvez não tenha sido visto nem ouvido bem, mas avulta quando estou só - e distingo perfeitamente a criança, o operário faminto, os namorados que desejam deitar-se. Eles me invadiram por assim dizer violentamente. Não fiz nenhum esforço para observar o que passava na multidão, ia de cabeça baixa, dando encontrões a torto e a direita nos transeuntes. De repente um grito, uma palavra amarga, um suspiro - e algumas figuras se criaram, foram bulir comigo na cama".
(Graciliano Ramos. Angústia. São Paulo: Círculo do Livro, 1988, p.107). 


quarta-feira, 31 de julho de 2013

A morte de Exupéry

No dia 31 de julho de 1944, o escritor, poeta e aviador francês Antoine de Saint-Exupéry desapareceu durante um voo na região de Marselha.
Nascido em 29 de junho de 1900 numa família saída da nobreza, Saint-Exupery consegue uma infância feliz ainda que diante da morte prematura do pai. Concluído o ensino médio, tentou ingressar, sem sucesso, na Escola Naval. Orienta-se então para as belas artes e arquitetura. Obteve o brevê de aviador quando servia o exército em 1921.
É contratado pela companhia aeropostal em 1926, passando a transportar correspondência e mercadorias de Toulouse ao Senegal. Paralelamente publica, inspirando-se em suas experiências de aviador, seus primeiros romances: Correio do Sul, em 1929, e, sobretudo, Voo Noturno, em 1931.
Lockheed F5B , avião em que Antoine de Saint-Exupéry desapareceu
A partir de 1932, passa a se dedicar ao jornalismo. Realiza grandes reportagens no Vietnã, em 1934, em Moscou, em 1935 e na Espanha, em 1936. Todas as estadas alimentariam as reflexões que desenvolve em Terra dos Homens, publicado em 1939. É nesse ano que acaba mobilizado na aeronáutica francesa. Após o armistício com a Alemanha, deixa a França e viaja a Nova York, tornando-se uma das vozes da resistência.
Ansioso por entrar em ação, incorpora-se a uma unidade encarregada de reconhecimento fotográfico aéreo na Sardenha, durante a primavera de 1944. Ao tentar acompanhar o desembarque em Provence em 31 de julho de 1944, acaba desaparecendo. Se a morte do comandante Saint-Exupery acabou glorificada, ainda assim restava elucidar as circunstâncias. Seu avião só foi encontrado em 2004.
O Pequeno Príncipe, escrito em Nova York, durante a guerra, é publicado com suas próprias ilustrações em 1943. Esse conto, pleno de encanto e humanidade, conquista rapidamente um imenso sucesso mundial.
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En 1950, um pastor de Aix-la-Chapelle, antigo oficial de informações da Luftwaffe, alegou ter visto no dia 31 de julho de 1944 um modelo P-38 Lightning sendo abatido no Mediterrâneo por um Focke-Wulf alemão. Em 1972, surge o testemunho póstumo de um jovem oficial alemão, Robert Heichele, que teria atirado contra o Lightning, por volta do meio-dia, sobre a costa mediterrânea francesa. Nos anos 1990, surge tardiamente outro testemunho, no qual um habitante de Carqueiranne alegou ter visto, naquele fatídico dia, um avião ser abatido. O mar teria em seguido levado o corpo de um soldado à praia, que foi enterrado anonimamente no cemitério da comuna.
O corpo foi exumado e seu DNA testado. Os resultados, contudo, se mostraram negativos. A cada passo essas revelações realimentavam o interesse dos especialistas e do grande público no mistério de Saint-Exupery.
Enfim, em 2000, pedaços de sua aeronave são encontrados no Mediterrâneo. Remontados em setembro de 2003, os restos do avião são formalmente identificados em 7 de abril de 2004 graças ao número de série do aparelho. Os destroços do Lightning estão expostos no Museu do Ar e do Espaço de Bourget, num espaço dedicado ao escritor-piloto.
Nada, contudo, permite chegar a uma conclusão definitiva sobre as circunstâncias de sua morte, ainda que simulações informáticas do acidente revelem a aeronave se partindo na vertical e em grande velocidade.
Alguns chegaram mesmo a cogitar, para escândalo dos familiares do autor, a hipótese de suicídio de um Saint-Exupery debilitado fisicamente, desesperado diante de um mundo que se anunciava em tom francamente pessimista.
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quinta-feira, 25 de julho de 2013

A mulher mais linda da cidade - Charles Bukowski


Das 5 irmãs, Cass era a mais moça e a mais bela. E a mais linda mulher da cidade. Mestiça de índia, de corpo flexível, estranho, sinuoso que nem cobra e fogoso como os olhos: um fogaréu vivo ambulante. Espírito impaciente para romper o molde incapaz de retê-lo. Os cabelos pretos, longos e sedosos, ondulavam e balançavam ao andar. Sempre muito animada ou então deprimida, com Cass não havia esse negócio de meio termo. Segundo alguns, era louca. Opinião de apáticos. Que jamais poderiam compreendê-la. Para os homens, parecia apenas uma máquina de fazer sexo e pouco estavam ligando para a possibilidade de que fosse maluca. E passava a vida a dançar, a namorar e beijar. Mas, salvo raras exceções, na hora agá sempre encontrava forma de sumir e deixar todo mundo na mão.
As irmãs a acusavam de desperdiçar sua beleza, de falta de tino; só que Cass não era boba e sabia muito bem o que queria: pintava, dançava, cantava, dedicava-se a trabalhos de argila e, quando alguém se feria, na carne ou no espírito, a pena que sentia era uma coisa vinda do fundo da alma. A mentalidade é que simplesmente destoava das demais: nada tinha de prática. Quando seus namorados ficavam atraídos por ela, as irmãs se enciumavam e se enfureciam, achando que não sabia aproveitá-los como mereciam. Costumava mostrar-se boazinha com os feios e revoltava-se contra os considerados bonitos — “uns frouxos”, dizia, “sem graça nenhuma. Pensam que basta ter orelhinhas perfeitas e nariz bem modelado… Tudo por fora e nada por dentro…” Quando perdia a paciência, chegava às raias da loucura; tinha um gênio que alguns qualificavam de insanidade mental.
O pai havia morrido alcoólatra e a mãe fugira de casa, abandonando as filhas. As meninas procuraram um parente, que resolveu interná-las num convento. Experiência nada interessante, sobretudo para Cass. As colegas eram muito ciumentas e teve que brigar com a maioria. Trazia marcas de lâmina de gilete por todo o braço esquerdo, de tanto se defender durante suas brigas. Guardava, inclusive, uma cicatriz indelével na face esquerda, que em vez de empanar-lhe a beleza, só servia para realçá-la.
Conheci Cass uma noite no West End Bar, Fazia vários dias que tinha saído do convento. Por ser a caçula entre as irmãs, fora a última a sair. Simplesmente entrou e sentou do meu lado. Eu era provavelmente o homem mais feio da cidade — o que bem pode ter contribuído.
— Quer um drinque? — perguntei.
— Claro, por que não?
Não creio que houvesse nada de especial na conversa que tivemos essa noite. Foi mais a impressão que causava. Tinha me escolhido e ponto final. Sem a menor coação. Gostou da bebida e tomou varias doses. Não parecia ser de maior idade, mas, não sei como, ninguém se recusava a servi-la. Talvez tivesse carteira de identidade falsa, sei lá. O certo é que toda vez que voltava do toalete para sentar do meu lado, me dava uma pontada de orgulho. Não só era a mais linda mulher da cidade como também das mais belas que vi em toda minha vida. Passei-lhe o braço pela cintura e dei-lhe um beijo.
— Me acha bonita? — perguntou.
— Lógico que acho, mas não é só isso… é mais que uma simples questão de beleza…
— As pessoas sempre me acusam de ser bonita. Acha mesmo que eu sou?
— Bonita não é bem o termo, e nem te faz justiça.
Cass meteu a mão na bolsa. Julguei que estivesse procurando um lenço. Mas tirou um longo grampo de chapéu. Antes que pudesse impedir, já tinha espetado o tal grampo, de lado, na ponta do nariz. Senti asco e horror.
Ela me olhou e riu.
— E agora, ainda me acha bonita? O que é que você acha agora, cara?
Puxei o grampo, estancando o sangue com o lenço que trazia no bolso. Diversas pessoas, inclusive o sujeito que atendia no balcão, tinham assistido a cena. Ele veio até a mesa:
— Olha — disse para Cass, — se fizer isso de novo, vai ter que dar o fora. Aqui ninguém gosta de drama.
— Ah, vai te foder, cara!
— É melhor não dar mais bebida pra ela — aconselhou o sujeito.
— Não tem perigo — prometi.
— O nariz é meu — protestou Cass, — faço dele o que bem entendo.
— Não faz, não — retruquei, — porque isso me dói.
— Quer dizer que eu cravo o grampo no nariz e você é que sente dor?
— Sinto, sim. Palavra.
— Está bem, pode deixar que eu não cravo mais. Fica sossegado.
Me beijou, ainda sorrindo e com o lenço encostado no nariz. Na hora de fechar o bar, fomos para onde eu morava. Tinha um pouco de cerveja na geladeira e ficamos lá sentados, conversando. E só então percebi que estava diante de uma criatura cheia de delicadeza e carinho. Que se traia sem se dar conta. Ao mesmo tempo que se encolhia numa mistura de insensatez e incoerência. Uma verdadeira preciosidade. Uma jóia, linda e espiritual. Talvez algum homem, uma coisa qualquer, um dia a destruísse para sempre. Fiquei torcendo para que não fosse eu.
Deitamos na cama e, depois que apaguei a luz, Cass perguntou:
— Quando é que você quer transar? Agora ou amanhã de manhã?
— Amanhã de manhã — respondi, — virando de costas pra ela.
No dia seguinte me levantei e fiz dois cafés. Levei o dela na cama.
Deu uma risada.                                     
— Você é o primeiro homem que conheço que não quis transar de noite.
— Deixa pra lá — retruquei, — a gente nem precisa disso.
— Não, pára aí, agora me deu vontade. Espera um pouco que não demoro.
Foi até o banheiro e voltou em seguida, com uma aparência simplesmente sensacional — os longos cabelos pretos brilhando, os olhos e a boca brilhando, aquilo brilhando… Mostrava o corpo com calma, como a coisa boa que era. Meteu-se em baixo do lençol.
— Vem de uma vez, gostosão.
Deitei na cama.
Beijava com entrega, mas sem se afobar. Passei-lhe as mãos pelo corpo todo, por entre os cabelos. Fui por cima. Era quente e apertada. Comecei a meter devagar, compassadamente, não querendo acabar logo. Os olhos dela encaravam, fixos, os meus.
— Qual é o teu nome? — perguntei.
— Porra, que diferença faz? — replicou.
Ri e continuei metendo. Mais tarde se vestiu e levei-a de carro de novo para o bar. Mas não foi nada fácil esquecê-la. Eu não andava trabalhando e dormi até às 2 da tarde. Depois levantei e li o jornal. Estava na banheira quando ela entrou com uma folhagem grande na mão — uma folha de inhame.
— Sabia que ia te encontrar no banho — disse, — por isso trouxe isto aqui pra cobrir esse teu troço aí, seu nudista.
E atirou a folha de inhame dentro da banheira.
— Como adivinhou que eu estava aqui?
— Adivinhando, ora.
Chegava quase sempre quando eu estava tomando banho. O horário podia variar, mas Cass raramente se enganava. E tinha todos os dias a folha de inhame. Depois a gente trepava.
Houve uma ou duas noites em que telefonou e tive que ir pagar a fiança para livrá-la da detenção por embriaguez ou desordem.
— Esses filhos da puta — disse ela, — só porque pagam umas biritas pensam que são donos da gente.
— Quem topa o convite já está comprando barulho.
— Imaginei que estivessem interessados em mim e não apenas no meu corpo.
— Eu estou interessado em você e também no seu corpo. Mas duvido muito que a maioria não se contente com o corpo.
Me ausentei seis meses da cidade, vagabundeei um pouco e acabei voltando. Não esqueci Cass, mas a gente havia discutido por algum motivo qualquer e me deu vontade de zanzar por aí. Quando cheguei, supus que tivesse sumido, mas nem fazia meia hora que estava sentado no West End Bar quando entrou e veio sentar do meu lado.
— Como é, seu sacana, pelo que vejo já voltou.
Pedi bebida para ela. Depois olhei. Estava com um vestido de gola fechada. Cass jamais tinha andado com um traje desses. E logo abaixo de cada olheira, espetados, havia dois grampos com ponta de vidro. Só dava para ver as pontas, mas os grampos, virados para baixo, estavam enterrados na carne do rosto.
— Porra, ainda não desistiu de estragar sua beleza?
— Que nada, seu bobo, agora é moda.
— Pirou de vez.
— Sabe que sinto saudade — comentou.
— Não tem mais ninguém no pedaço?
— Não, só você. Mas agora resolvi dar uma de puta. Cobro dez pratas. Pra você, porém, é de graça.
— Tira esses grampos daí.
— Negativo. É moda.
— Estão me deixando chateado.
— Tem certeza?
— Claro que tenho, pô.
Cass tirou os grampos devagar e guardou na bolsa.
— Por que é que faz tanta questão de esculhambar o teu rosto? — perguntei. — Quando vai se conformar com a idéia de ser bonita?
— Quando as pessoas pararem de pensar que é a única coisa que eu sou. Beleza não vale nada e depois não dura. Você nem sabe a sorte que tem de ser feio. Assim, quando alguém simpatiza contigo, já sabe que é por outra razão.
— Então tá. Sorte minha, né?
— Não que você seja feio. Os outros é que acham. Até que a tua cara é bacana.
— Muito obrigado.
Tomamos outro drinque.
— O que anda fazendo? — perguntou.
— Nada. Não há jeito de me interessar por coisa alguma. Falta de ânimo.
— Eu também. Se fosse mulher, podia ser puta.
— Acho que não ia gostar de um contato tão íntimo com tantos caras desconhecidos. Acaba enchendo.
— Puro fato, acaba enchendo mesmo. Tudo acaba enchendo.
Saímos juntos do bar. Na rua as pessoas ainda se espantavam com Cass. Continuava linda, talvez mais do que antes.
Fomos para o meu endereço. Abri uma garrafa de vinho e ficamos batendo papo. Entre nós dois a conversa sempre fluía espontânea. Ela falava um pouco, eu prestava atenção, e depois chegava a minha vez. Nosso diálogo era sempre assim, simples, sem esforço nenhum. Parecia que tínhamos segredos em comum. Quando se descobria um que valesse a pena, Cass dava aquela risada — da maneira que só ela sabia dar. Era como a alegria provocada por uma fogueira. Enquanto conversávamos, fomos nos beijando e aproximando cada vez mais. Ficamos com tesão e resolvemos ir para a cama, Foi então que Cass tirou o vestido de gola fechada e vi a horrenda cicatriz irregular no pescoço — grande e saliente.
— Puta que pariu, criatura — exclamei, já deitado. — Puta que pariu. Como é que você foi me fazer uma coisa dessas?
— Experimentei uma noite, com um caco de garrafa. Não gosta mais de mim? Deixei de ser bonita?
Puxei-a para a cama e dei-lhe um beijo na boca. Me empurrou para trás e riu.
— Tem homens que me pagam as dez pratas, aí tiro a roupa e desistem
de transar. E eu guardo o dinheiro pra mim. É engraçadíssimo.
— Se é — retruquei, — estou quase morrendo de tanto rir… Cass, sua cretina, eu amo você… mas pára com esse negócio de querer se destruir. Você é a mulher mais cheia de vida que já encontrei.
Beijamos de novo. Começou a chorar baixinho. Sentia-lhe as lágrimas no rosto. Aqueles longos cabelos pretos me cobriam as costas feito mortalha. Colamos os corpos e começamos a trepar, lenta, sombria e maravilhosamente bem.
Na manhã seguinte acordei com Cass já em pé, preparando o café. Dava a impressão de estar perfeitamente calma e feliz. Até cantarolava. Fiquei ali deitado, contente com a felicidade dela. Por fim veio até a cama e me sacudiu.
— Levanta, cafajeste! Joga um pouco de água fria nessa cara e nessa pica e vem participar da festa!
Naquele dia convidei-a para ir à praia de carro. Como estávamos na metade da semana e o verão ainda não tinha chegado, encontramos tudo maravilhosamente deserto. Ratos de praia, com a roupa em farrapos, dormiam espalhados pelo gramado longe da areia. Outros, sentados em bancos de pedra, dividiam uma garrafa de bebida tristonha. Gaivotas esvoaçavam no ar, descuidadas e no entanto aturdidas. Velhinhas de seus 70 ou 80 anos, lado a lado nos bancos, comentavam a venda de imóveis herdados de maridos mortos há muito tempo, vitimados pelo ritmo e estupidez da sobrevivência. Por causa de tudo isso, respirava-se uma atmosfera de paz e ficamos andando, para cima e para baixo, deitando e espreguiçando-nos na relva, sem falar quase nada. Com aquela sensação simplesmente gostosa de estar juntos. Comprei sanduíches, batata frita e uns copos de bebida e nos deixamos ficar sentados, comendo na areia. Depois me abracei a Cass e dormimos encostados um no outro durante quase uma hora. Não sei por quê, mas foi melhor do que se tivessemos transado. Quando acordamos, voltamos de carro para onde eu morava e fiz o jantar. Jantamos e sugeri que fossemos para a cama. Cass hesitou um bocado de tempo, me olhando, e ao respondeu, pensativa:
— Não.
Levei-a outra vez até o bar, paguei-lhe um drinque e vim-me embora. No dia seguinte encontrei serviço como empacotador numa fábrica e passei o resto da semana trabalhando. Andava cansado demais para cogitar de sair à noite, mas naquela sexta-feira acabei indo ao West End Bar. Sentei e esperei por Cass. Passaram-se horas. Depois que já estava bastante bêbado, o sujeito que atendia no balcão me disse:
— Uma pena o que houve com sua amiga.
— Pena por quê? — estranhei.
— Desculpe. Pensei que soubesse.
— Não.
— Se suicidou. Foi enterrada ontem.
— Enterrada? — repeti.
Estava com a sensação de que ela ia entrar a qualquer momento pela porta da rua. Como poderia estar morta?
— Sim, pelas irmãs.
— Se suicidou? Pode-se saber de que modo?
— Cortou a garganta.
— Ah. Me dá outra dose.
Bebi até a hora de fechar. Cass, a mais bela das 5 irmãs, a mais linda mulher da cidade. Consegui ir dirigindo até onde morava. Não parava de pensar. Deveria ter insistido para que ficasse comigo em vez de aceitar aquele “não”. Todo o seu jeito era de quem gostava de mim. Eu é que simplesmente tinha bancado o durão, decerto por preguiça, por ser desligado demais. Merecia a minha morte e a dela. Era um cão. Não, para que pôr a culpa nos cães? Levantei, encontrei uma garrafa de vinho e bebi quase inteira. Cass, a garota mais linda da cidade, morta aos vinte anos.
Lá fora, na rua, alguém buzinou dentro de um carro. Uma buzina fortíssima, insistente. Bati a garrafa com força e gritei:
— Merda! Pára com isso, seu filho da puta!
A noite foi ficando cada vez mais escura e eu não podia fazer mais nada.

(In. A mulher mais linda da cidade e outras histórias. Porto Alegre: LP&M, 2012, p.5-12).

quarta-feira, 24 de julho de 2013

Documentário: Imagens do inconsciente, "Em busca do espaço cotidiano" - Fernando Diniz


Nise da Silveira - Do mundo da Caralâmpia à emoção de lidar


Entrevista com a Dra. Nise da Silveira, realizada em 03 e 04 de agosto 1992 por Gonzaga Leal e Rubem Rocha Filho. Nesta entrevista, Nise fala das suas inquietações, das suas filiações teóricas e de sua experiência na relação com a loucura, com o desassossego, com a dor humana e com a instituição psiquiátrica. Se remete a Antonin Artaud e Jung como mestres decisivos na formulação do seu campo conceitual teórico-prático no manejo da clínica da psicose. Interroga a psiquiatria clássica ao mesmo tempo em que aponta a sua aliança com a anti-psiquiatria e com artistas pertencentes as mais diversas linguagens. Atrevida que era, utilizou o animal como co-terapeutas, desafiando o status quo da tradição psiquiátrica, o que veio fortalecer um dos seus conceitos de maior força e potência por ela desenvolvidos, O AFETO CATALIZADOR. Durante todo o percurso da entrevista Nise deixa claro o seu sonho desde pequena -- apaziguar o sofrimento humano. Conciliando ternura, firmeza de convicções, sensibilidade e rigor teórico, Nise esteve a frente do seu tempo, sendo responsável pela idealização e criação de dois espaços de clínica e de pesquisa de maior referência mundial, o MUSEU DE IMAGENS DO INCONSCIENTE, e a CASA DAS PALMEIRAS, instituição para pacientes egressos de clínicas psiquiátricas antecipando-se em mais de 30 anos ao que hoje modernamente chama-se CAPS -- CENTROS DE ATENÇÃO PSICO-SOCIAL.

Parte I:

Parte II:

Parte III:

segunda-feira, 22 de julho de 2013

Holocausto brasileiro - Daniela Arbex (trecho)

"Antônio Gomes da Silva, sessenta e oito anos, foi um dos pacientes encaminhados para o hospital, aos vinte e cinco anos. Há poucos registros sobre o passado de Cabo, como Antônio foi apelidado. O que se conta sobre ele é que o desemprego se somou à bebedeira em sua prisão. Hoje, passados mais de quarenta anos do episódio, o Cabo não sabe mais o motivo pelo qual foi mandado para o Colônia pela caneta de um delegado no dia 3 de janeiro de 1969.
- Não sei por que me prenderam. Cada um fala uma coisa. Mas, depois que perdi meu emprego, tudo se descontrolou. Da cadeia, me mandaram para o hospital, onde eu ficava pelado, embora houvesse muita roupa na lavanderia. Vinha tudo num caminhão, mas acho que eles queriam economizar. No começo, incomodava ficar nu, mas com o tempo a gente se acostumava. Se existe inferno, o Colônia era esse lugar.
Antônio fala baixo, quase como se não quisesse lembrar. Tem o rosto apoiado às mãos, e, apesar da estatura alta, parece querer esconder-se de si mesmo. Dentro da unidade, manteve-se calado durante vinte e um dos trinta e quatro anos em que ficou internado. Considerado mudo, soltou a voz, um dia, ao ouvir a banda de música do 9 Batalhão da Polícia Militar.
- Por que você não me disse que falava? - perguntou um funcionário da unidade, surpreso com a novidade.
- Uai, ninguém nunca perguntou.
Cabo também passou a vida assinando documentos com as digitais. Até descobrirem que ele sabia escrever o próprio nome. Deixou o hospital em 2003, para morar numa residência terapêutica de Barbacena, uma das vinte e oito casas mantidas pela prefeitura da cidade em parceria com a ONG Instituto Bom Pastor.
Quando se viu fora dos muros do hospital, não sabia como sobreviver sem amarras.
- A que horas as luzes se apagam aqui? - perguntou na primeira noite liberto do cativeiro.
Retirado do convíviio social por quase meio século, ele jamais poderia imaginar que agora era o dono do seu tempo e que tinha ele mesmo o poder de clarear ou escurecer o ambiente com um simples toque do interruptor. Além de nunca ter visto um apagador de luz, ser dono de si era uma novidade para quem viveu décadas de instituicionalização. Para Antônio, no entanto, se desvenciliar do Colônia foi tão difícil quanto mudar de endereço. O hospital estava ali, marcado não só em seu corpo, mas também impregnado na sua alma. Por isso, os pesadelos tornavam seu sono sobressaltado e se repetiam noite após noite. Acordava com o suor umedecendo o pijama e sempre com a mesma sensação de terror. Olhava ao redor para ver onde estava e descobria que os eletrochoques com os quais sonhava ainda o mantinham prisioneiro do Colônia.
Recordava-se sempre do início das sessões, quando era segurado pelas mãos e pelos pés para que fosse amarrado ao leito. Os gritos de medo eram calados pela borracha colocada à força entre os lábios, única maneira de garantir que não tivesse a língua cirtada durante as descargas elétricas. O que acontecia após o choque Cabo não sabia. Perdia a consciência, quando o castigo lhe era aplicado".
(In. Holocausto brasileiro.Daniela Arbex. São Paulo: Geração Editorial, 2013, p.30-35).
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Booktrailer do livro:
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"Em nome da razão", documentário de Helvécio  Ratton sobre o "Colônia":

quarta-feira, 3 de julho de 2013

Eu não possuo o meu corpo - Fernando Pessoa

Eu não possuo o meu corpo - como posso eu possuir
com ele? Eu não possuo a minha alma - como posso
possuir com ela? Não compreendo o meu espírito -
como através dele compreender?
Não possuímos nem o corpo, nem uma verdade - nem sequer uma ilusão. Somos fantasmas de mentiras,
sombras de ilusões, e a nossa vida é oca por fora e por
dentro.
Conhece alquém as fronteiras à sua alma, para que
possa dizer - eu sou eu?
Mas eu sei que o que sinto, sinto-o eu.
Quando outrem possui esse corpo, possui nele o
mesmo que eu? Não. Possui outra sensação.
Possuímos nós alguma coisa? Se nós não sabemos o que
somos, como sabemos nós o que possuímos?
Se do que comes, dissesses, "eu possuo isto", eu
compreendia-te. Porque sem dúvida o que comes, tu o
inclues em ti, tu o transformas em matéria tua, tu o
sentes entrar em ti e pertencer-te. Mas do que comes
não falas tu de "posse". A que chamas tu possuir?

(In. Fernando Pessoa. Quando fui outro. Rio de Janeiro: Objetiva: 2011, p.51).


Há doenças piores que as doenças - Fernando Pessoa

Há doenças piores que as doenças,
Há dores que não doem, nem na alma
Mas que são dolorosas mais que as outras.
Há angústias sonhadas mais reais
Que as que a vida nos traz, há sensações
Sentidas só com imaginá-las
Que são mais nossas do que a própria vida,
Há tanta coisa que, sem existir,
Existe, existe demoradamente,
E demoradamente é nossa e nós...
Por sobre o verde turvo do amplo rio
Os circunflexos brancos das gaivotas...
Por sobre a alma o adejar inútil
Do que não foi, nem pôde ser, e é tudo.
Dá-me mais vinho, porque a vida é nada.

(In. Quando fui outro. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011, p. 50).