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sexta-feira, 31 de maio de 2013

As vantagens de ser invisível - Stephen Chbosky (trechos favoritos).

 
"Só preciso saber que existe alguém que ouve e entende, e não tenta dormir com as pessoas, mesmo que tenha a oportunidade. Preciso saber que essas pessoas existem" - (p.12).
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"O funeral de Michael foi estranho, porque o pai dele não chorou. E três meses depois ele deixou a mãe de Michael (...). As vezes eu penso nisso. Imagino o que acontecia na casa de Michael na hora do jantar e dos programas de tv. Michael não deixou nem um bilhete, ou pelo menos seus pais não deixaram ninguém ver um. Talvez fossem "problemas em casa". Eu bem que gostaria de saber. Assim eu sentiria a falta dele com mais clareza. A dor poderia fazer sentido" (p. 14).
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" - Eu quero dizer que não é como nos filmes, em que as garotas gostam de idiotas ou coisa parecida. Não é tão fácil assim. Elas gostam de alguém que possa dar a elas um propósito" - (p. 33).
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"- Você sempre pensa muito nisso, Charlie?
- Isso é ruim? - Eu só queria que alguém me dissesse a verdade.
- Não necessariamente. É só que às vezes as pessoas usam o pensamento para não participar da vida.
- Isso é ruim?
- É" - (p.34).
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"E ela me beijou.. Foi um tipo de beijo que eu nunca poderia contar a meus amigos como foi veemente. Foi o tipo de beijo que me fez saber que eu nunca seria tão feliz em toda a minha vida" - (p.80).
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"É como quando você se olha no espelho e diz seu nome. E chega a um ponto em que nada parece real. Bom, às vezes, eu posso fazer isso. Mas não preciso de uma hora diante do espelho. Acontece muito rápido e as coisas começam a escapulir. E eu abro os meus olhos e não vejo nada. E deois começo a respirar com dificuldade, tentando ver alguma coisa, mas não consigo. Não acontece o tempo todo, mas quando ocorre fico assustado" - (p. 83).
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"Só queria que Deus, ou meus pais, ou minhas irmã, ou alguém, me dissesse o que há de errado comigo. Que me dissesse como ser diferente de uma forma que faça sentido. Que fizesse tudo isso passar. E desaparecer. Sei que é errrado, porque a responsabilidade é minha, e sei que as coisas pioram antes de melhorar porque é o que diz meu psiquiatra, mas essa fase pior está grande demais para mim" - (p.149).
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"Eu só me preocupava com o fato de que Sam estava muito magoada. E acho que percebi, naquele momento, que eu realmente a amava. Porque não havia nada a ganhar, mas isso não importava" - (p.189).
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"Acho que, se um dia eu tiver filhos e eles ficarem perturbados, não vou dizer a eles que as péssoas passam fome na China nem nada assim, porque isso não isso mudaria o fato de que eles estão transtornados. E mesmo que alguém esteja muito pior, isso não muda em nada o fato de que você tem o que você tem" - (p.221).
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(As vantagens de ser invisível. Stephen Chbosky. Rio de Janeiro: Rocco, 2007).
 



terça-feira, 28 de maio de 2013

Uma mente brilhante - John Nash

"John Forbes Nash Jr. - gênio matemático, inventor da teoria do comportamento racional, visionário da máquina pensante - estivera sentado com seu visitante, também um matemático, durante quse meia hora. Era a tardinha de um dia de trabalho da primavera de 1959, e, embora ainda fosse maio, fazia um calor desconfortável. Nash estava afundado numa poltrona num dos cantos do saguão do hospital, vestindo displicentemente uma camisa de náilon para fora das calças sem cinto. Sua compleição robusta estava frouxa como uma boneca de trapo; as feições finamente esculpidas, sem expressão. Estivera fitando com olhar opaco um ponto logo à frente do pé esquerdo do professor de Harvard George Mackey, praticamente imóvel, exceto para afastar da testa os cabelos pretos e compridos, num movimento intermitente, repetitivo. Seu visitante sentava-se ereto, oprimido pelo silêncio, bem consciente de que as portas da sala estavam trancadas. Por fim, Mackey não conseguiu mais se conter. Sua voz saiu ligeiramente impertinente, mas ele esforçou-se para ser gentil. "Como é que você pode", começou Mackey, "como é que você pode, um matemático, um homem dedicado à razão e à prova lógica...como é que você pode acreditar que extraterrrestres estão lhe enviando mensagens? Como é que que você pode acreditar que está sendo recutado por alienígenas do espaço exterior para salvar o mundo? Como é que você pode...?".
Nash, por fim, levantou os olhos e fitou Mackey sem piscar, com um olhar tão frio e desprovido de emoção como o de um pássaro ou de uma cobra. "Porque", disse Nash vagarosamente, com seu sotaque sulista arrastado, suave e moderado, como se estivesse falando para si próprio, "as idéias que eu tinha sobre seres sobrenaturais vinham a mim da mesma forma que as minhas idéias matemáticas. De modo que eu as considerei seriamente".
(In. Uma mente brilhante - Sylvia Nasar . Rio de Janeiro: Bestbolso, 2013, p.7-8).

segunda-feira, 27 de maio de 2013

Bem no fundo - Paulo Leminski


"no fundo, no fundo
brm lá no fundo,
a gente gostaria
de ver nossos problemas
resolvidos por decreto

a partir desta data,
aquela mágoa sem remédio
é considerada nula
e sobre ela - silêncio perpétuo

extinto por lei todo o remorso,
maldito seja qem olhar pra trás,
lá pra trás não há nada,
e nada mais

mas problemas não se resolvem,
problemas têm família grande,
e aos domingos saem todos para passear
o problema, sua senhora
e outros pequenos probleminhas".


(In. Toda poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2013, p. 195).


quinta-feira, 23 de maio de 2013

O mal-estar na civilização - Sigmund Freud (trecho)


"...falta-me o ânimo de apresentar-me aos semelhantes como um profeta, e me curvo à sua recriminação de que não sou capaz de lhes oferecer consolo, pois no fundo é isso o que exigem todos, tanto os mais veementes revolucionários como os mais piedosos crentes, de forma igualmente apaixonada.
A meu ver, a questão decisiva para a espécie humana é saber se, e em que medida, a sua evolução cultural poderá controlar as perturbações trazidas à vida em comum pelos instintos humanos de agressão e autodestruição. Precisamente quanto a isso a época de hoje merecerá talvez um interesse especial. Atualmente os seres humanos atingiram um tal controle das forças da natureza, que não lhes é difícil recorrerem a elas para se exterminarem até o último homem. Eles sabem disso; daí, em boa parte, o seu atual desassossego, sua infelicidade, seu medo. Cabe agora esperar que a outra das duas "potências celestiais", o eterno Eros, empreenda um esforço para afirmar-se na luta contra o adversário igualmente imortal. Mas quem pode prever o sucesso e o desenlace?"

(O mal-estar na civilização. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p.121-2).


domingo, 19 de maio de 2013

Pé de página


"O mundo se abriu na tarde em que, pé ante pé, subiste as escadas, me encontrando na soleira.
A vida desbotou na manhã em que, sentindo falta do habitual, refizeste tuas malas.
Curiosamente, neste mesmo dia, me advertiste que as coisas não podem se dar sempre à mesma maneira.
Paradoxos à parte, minhas lágrimas nunca tiveram o propósito de dissuadir-te.
Sei do não-lugar que ocupo em tua vida, mas ainda não aprendi a silenciar a dor que me causa a tua partida".


Com Freud... - Jacques Lacan


"É realmente impressionante que uma dimensão que se faz sentir como a de Outra-coisa em que tantas experiências que nos homens vivem, não, em absoluto, sem pensar nelas, e sim pensando, mas sem pensar que pensam e, como Telêmaco, pensando na despesa, nunca tenha sido pensada até congruentemente dita por aqueles a quem a idéia de pensamento garante pensar.
O desejo, o tédio, a reclusão, a revolta, a prece, a vigília (eu gostaria que nos detivéssemos nesta, já que Freud se refere expressamente a ela através da evocação, no meio de seu Schreber, de uma passagem do Zaratustra de Nietzsche), o pânico, enfim, estão aí para nos atestar a dimensão desse Alhures e para nos chamar a atenção para isso, não digo como simples estados d´alma que o pensa-sem-rir pode colocarem seu lugar, porém, muito mais consideravelmente, como princípios permanentes das organizações coletivas, fora das quais a vida humana não parece poder manter-se por muito tempo.
Sem dúvida, não é impossível que o mais pensável pensamento em-pensar, ele mesmo pensando ser essa Outra-coisa, possa ter sempre tolerado mal essa eventual concorrência.
Mas essa aversão torna-se perfeitamente clara, uma vez feita a junção conceitual, na qual ninguém pensara até então, desse Alhures com o lugar, presente para todos e vedado para caa um, em que Freud descobriu que, sem que se pense nisso, e portanto, sem que qualquer um possa pensar estar pensando melhor que outro, isso pensa. Isso pensa um bocado mal, mas pensa com firmeza, pois foi nestes termos que ele nos anunciou o inconsciente: pensamentos que, se as suas leis não são de modo algum as mesmas de nossos pensamentos de todos os dias, nobres ou vulgares, são perfeitamente articulados.
Mais um meio, portanto, de reduzir esse Alhures à forma imaginária de uma nostalgia, de um Paraíso perdido ou futuro; o que encontramos aí é o paraíso dos amores infantis, onde, Baudelaire de Deus!, ele se abstém de coisas escandalosas.
Aliás, se nos restasse alguma dúvida, Freud denominou o lugar do inconsciente por um termo que o impressionara em Fechner (que em seu experimentalismo, não era em absoluto o realista que nos sugerem nossos manuais): ein anderer Schauplatz, uma outra cena; e o retomou vinte vezes em suas obras inaugurais".

(De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 534-5). 


quarta-feira, 1 de maio de 2013

"Eis uma história apaixonante.." - Françoise Dolto

 
"Eis uma história apaixonante acontecida com uma psicanalista já falecida. Ela ilustra de maneira exemplar como uma criancinha compreende e grava as palavras sonoras de uma língua desconhecida; como essas mesmas palavras reaparecem - anos mais tarde - no corpo dessa criança ao tornar-se adulta; e como, enfim, o psicanalista desse mesmo adulto pode, por sua vez, recolher essas palavras deixando-as inscreverem-se nele, em sua própria imagem de corpo de analista. Em primeiro lugar, devo esclarecer que pouco antes de sua morte, a psicanalista Muriel Cahen me pediu que expusesse publicamente a experiência que vou lhes contar; experiência fulgurante que atravessamos juntas, ela como analisanda, eu como sua psicanalista. Sabendo-se gravemente acometida pela doença de Hodgkin e submetida a um terrível tratamento químico à base de cortisona, ela veio me consultar depois que seu antigo analista preferiu não retomar seu tratamento. Recebi-a então durante seis meses; os últimos seis meses de sua vida. Apesar da consciência aguda de sua doença, ela ignorava o prognóstico irremediavelmente fatal que a condenava. Durante essa época extremamente dolorosa, sua atividade como psicanalista prosseguira sem descanso, com uma força e coragem admiráveis.
Um dia, durante uma sessão, ela apresentou um sonho em que as palavras bizarramente pronunciadas destacavam-se nitidamente do contexto geral do sonho. Mais que palavras, tratava-se de uma série de sons incompreensíveis. Lembro-me muito bem da exclamação que se seguiu ao relato de seu sonho: "Eu ignorava que era possível sentir a felicidade que senti nesse sonho e com uma sonoridade tão curiosa". Tenho o hábito de escrever tudo o que acontece e se diz em uma sessão de análise.  É cômodo para mim, pois, se minha mão escreve, eu, por minha vez, fico completamente livre para pensar. Minha mão escreve, e eu penso. Então, naquele dia, registrei as palavras de sonoridade estranha. Antes do fim da sessão, lembrei-me de que Muriel, nascida em Londres, vivera os primeiros nove meses de sua vida na ìndia. Seu pai, funcionário inglês em missão nesse país, contratara uma moça hindu para cuidar do bebê. Pouco a pouco estabeleceu-se um tal laço afetivo entre a babá e a criança que o pai cogitava levar a jovem com eles para a Inglaterra. Esse plano verificou-se impossível, e a pequena Muriel teve de abandonar definitivamente sua primeira babá. Aparentemente, esse separação não marcara a criança.
A lembrança desses primeiros meses da vida de Muriel Cahen associou-se às palavras do sonho que eu registrava no papel. Quando a sessão terminou, e no momento da despedida, eu olhe disse, entregando-lhe o papel no qual transcrevera aqueles fonemas estranhos: "Eis a frase tal como a escutei e anotei. Seria mesmo curioso se os sons, ouvidos no sonho, fossem palavras derivadas da língua do país onde você viveu os primeiros meses". Essa idéia agradou-a tanto que ela foi consultar um residente hindu da cidade universitária que acabou apresentando-a a um compatriota que falava o dialeto da região onde o pai de Muriel exercera sua missão. Ao ler as palavras inscritas no papel, o estudante hindu começou a rir, explicando a Muriel que aquelas palavras correspondiam exatamente a uma expressão popular empregada pelas babás para ninar os bebês: "Os olhos da minha menininha são os mais belos que as estrelas". Alguns dias mais tarde, a doença de Muriel agravou-se com o surgimento de uma paraplegia indolor. Suas pernas não a carregavam mais, estavam tão imaturas quanto as de um bebê de colo (...). No sonho de Muriel, as palavras de sonoridade bizarra bão representavam justamente a articulação que liga a imagem do corpo do bebê - inacabada no nível do esquema corporal da bacia e das pernas - à imagem suporte da jovem hindu, verdadeira mãe portadora da criança antes que esta soubesse andar? Ora, a alegria indizível experimentada no sonho não passava do retorno da ternura fusional entre uma mãe portadora que fala e um bebê imaturo que sabe escutar" -
(In. A criança do espelho. Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p.56-9).
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No filme "O dia em que não nasci", a atleta alemã Maria, de passagem pelo aeroporto da Argentina, ouve uma mulher entonar uma canção de ninar em espanhol, e sem que compreenda, aquilo a abala profundamente; movida pelo que Freud chamaria de Unheimlich, Maria fica em Buenos Aires e empreende uma busca aparentemente sem sentido que acaba por revelar a sua verdadeira origem - Maria era filha de pais argentinos que haviam sido vítimas da ditadura de Pinochet, e fora adotada por alemães.
Trailer do filme "O dia em que não nasci":
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domingo, 28 de abril de 2013

Noites brancas - Dostoiévski (trechos favoritos)

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"Agora, querida Nástienka, agora pareço o espírito do rei Salomão, que ficou mil anos numa caixa lacrada com sete selos, os quais foram finalmente retirados. Agora, querida Nástienka, quando nos encontramos novamente depois de tão longa separação - porque eu a conheço há muito tempo, Nástienka, porque há muito tempo procurava alguém, e isto é um sinal de que procurava justamente a senhorita e que estávamos fadados a nos encontrar neste momento -, agora em minha cabeça abriram-se milhares de válvulas e tenho de me derramar feito um rio de palavras, senão ficarei sufocado" - (p.33).
*
"...- Agora, quando estou sentado ao seu lado e falo consigo, tenho medo de pensar no futuro, pois no fututo está novamente a solidão, novamente esta vidaa inútil e cheirando a mofo; e com o quê vou sonhar se, desperto, fui tão feliz ao seu lado? Oh, bendita seja a senhorita, minha querida, por não ter me rejeitado logo na primeira vez. porque agora posso dizer que vivi ao menos duas noites em minha vida!
- Oh, não, não! - gritou Nástienka, e pequenas lágrimas brilharam em seus olhos. - Não será mais assim, não vamos nos separar assim! O que são duas noites?
- Oh, Nástienka, Nástienka! A senhorita sabe que me reconciliou por muito tempo comigo mesmo? Sabe que agora já não penso tão mal de mim mesmo como pensava em certos momentos? Sabe que, talvez, eu já não vá mais sofrer por ter cometido um crime e um pecado, pois uma vida assim é um crime e um pecado? E não pense que exagerei algo; pela graça de Deus, não pense isto, Nástienka, porque às vezes sou tomado por momentos de tanta tristeza, e tanta tristeza...Porque nesses momentos já começa a me parecer que nunca serei capaz de começar a viver uma vida autêntica; porque já me parecia que eu tinha perdido todo o tato, toda noção do autêntico, do real; porque, enfim, eu maldizia a mim mesmo; porque depois de minhas noites fantásticas eu logo sou tomado por terríveis momentos de desilusão! Entretanto, sente-se que ao redor gira e ressoa uma multidão de pessoas no turbilhão da vida; sente-se, vê-se como as pessoas vivem: vivem de verdade; vê-se que a vida para elas não é proibida, que a vida delas não se dissipa como um sonho, como uma visão; que a vida delas se renova eternamente, é eternamente jovem, e que nenhuma de suas horas se assemelha a outra, ao passo que é triste e monótona até a vulgaridade a fantasia tímida, escrava de uma sombra, de uma idéia, escrava da primeira nuvem que cobrir de repente o sol e oprimir de tristeza o autêntico coração peterbursgense, que tanto aprecia o seu sol - e que fantasia pode haver na tristeza! Sente-se que ela, essa fantasia inesgotável, finalmente se cansa, enfraquece numa tensão eterna, pois você amadurece, abandona seus antigos ideiais: estes se desfazem em pó, em pedaços; se não há outra vida, então é preciso construí-la a partir desses pedaços. E no entanto, é outra coisa que a alma pede e quer! E em vão o sonhador remexe, como que nas cinzas, em seus velhos sonhos, procurando nessas cinzas ao menos uma centelha para soprá-la e, através do fogo renovador, aquecer o coração esfriado e ressuscitar novamente tudo o que antes era tão belo, que tocava a alama, que fazia o sangue fervilhar, que arrancava lágrimas dos olhos e que iludia com tanta perfeição! Sabe a que ponto cheguei, Nástienka? Sabe que já estou obrigado a celebrar o aniver´sario de minhas sensações, o aniversário daquilo que na realidade nunca aconteceu - porque esse aniversário é celebrado em memória daqueles mesmos sonhos tolos e incorpóreos -, e devo fazer isto porque estes sonhos tolos não existem, pois não há nada para substituí-los, e os sonhos devem ser substituídos! (...) E me pergunto: onde é que estão os meus sonhos? E balançando a cabeça, digo: como os anos voam depressa! E novamente pergunto: mas o que você fez dos seus anos? Onde sepultou a sua melhor época? Você viveu ou não? Veja, digo a mim mesmo, veja que o mundo está ficando frio. Ainda passarão anos, e atrás deles virá a solidão sombria, virá a velhice trêmula com uma bengala, e atrás dela a tristeza e a melancolia (...)" - (p.43-4).
*
"- Vamos, Nástienka, vamos! - gritei de entusiasmo. - E se eu a amasse já há vinte anos, ainda assim não a amaria mais do que agora!" (p.45).
*
"Meu Deus! Um momento inteiro de júbilo! Não será isto o bastante para uma vida inteira?" - (p.82).
 
 
(Noites brancas. São Paulo: Editora 34, 2005).


terça-feira, 16 de abril de 2013

Soneto de Homenagem - Antero de Quental

 
Cena do filme - As Pontes de Madison

"Se há nesta vida um Deus para os acasos,
Que pela humanidade o bem reparte
Que te dê da fortuna a melhor parte
Que venturas te dê, sem lei nem prazos.
...

Eu, de alegrias tenho os olhos rasos
de lágrimas, querida, ao vir brindar-te
Quando vejo que até para saudar-te,
As flores se debruçam sobre os vasos.

O meu brinde é sumário, curto e breve
Se o nome que se quer, quando se escreve
Move-se a pena com traços ideais.

Um anjo como tu, quando se brinda
Tem-se a missão cumprida e a festa finda
Quebra-se a taça e não se bebe mais".


segunda-feira, 15 de abril de 2013

A primeira noite de um homem - (trecho)


"Sinto-me muito bem com você.
(...).
Você é a primeira......
A primeira coisa agradável que me aconteceu em muito tempo.
A primeira pessoa cuja companhia eu suporto.
Toda a minha vida é uma desordem.
Uma nulidade" -
(Ben para Elaine).




*
Curiosidade: "Quando o filme foi lançado em Portugal, os censores do então regime ditatorial cortaram o final. Ou seja, o longa terminava com Benjamin atrás do vidro da igreja, vendo Elaine se casar. A idéia era não deixar passar nenhum mau exemplo para a juventude - no caso, o da jovem abandonando o altar".
(Do Livreto "A primeira noite de um homem" - da cinemateca Veja. São Paulo: Editora Abril, 2008, p.51). 
*
O trecho censurado em Portugal:
*
"The sound of silence", de Paul Simon and Garfunkel - tema do filme:

segunda-feira, 8 de abril de 2013

A questão que o artista propõe ao psicanalista - Alain Didier-Weill

Que o humano é efeito da mestiçagem de substâncias tão heterogêneas quanto o são a materialidade do corpo, a imagem do corpo e o verbo enxertado neste corpo, tal é o ensino quotidianamente concedido ao psicanalista.
O que a prática do psicanalista não cessa de lembrar-lhe é que essa mestiçagem, pela qual o real, o simbólico e o imaginário se entrelaçam, institui entre corpo, imaginário e palavra, uma nodulação cujo caráter problemático traduz-se por este sofrimento que se chama sintoma.
Se a ênfase do sofrimento incide sobre o corpo, o sintoma expresso pelo analisando privilegiará o mal-estar que pode um sujeito experimentar na maneira que tem de habitar o próprio corpo. Esse mal-estar é a própria expressão do fato de que, após ter-se tornado falante, o homem se viu despojado daquela naturalidade que tanto o fascina no corpo do animal: será concebível um cavalo, ou um gato, que dê a impressão de estar mal alojado em seu corpo, de sentir-se apertado nele ou, ao contrário, de nele perder-se?
Que poderá a análise transmitir a um sujeito que sofre de não sentir-se "em casa" no seu próprio corpo? De que modo poderá o analisando - o qual, mergulhado na depressão, tem a sensação de receber tamanha pressão da gravidade que não pode erguer um corpo que se tornou excessivamente pesado - reencontrar a leveza saltitante desse corpo?
A experiência nos ensina que o sujeito pode esquecer esta dimensão do corpo que pesa - vale dizer daquele companheiro que é o cadáver potencial - quando o real do corpo redescobre o liame primordial com o poder originário daquele véu humanizante que é a vestimenta, a roupa.
Por efeito da humanização trazida por este véu, o real do corpo subtraído ao reino exclusivo do peso torna-se um real chamado a elevar-se, a erguer-se num movimento que o impele a olhar para o céu. O enigma deste movimento ascensional em que nosso ancestral, o Homo erectus, ergueu-se  um dia envolve uma outra força que não a do músculo.
E assim é que esse movimento de reerguimento, que pode transmitir um trabalho analítico, prende-se à capacidade do analisando de poder esquecer que seu corpo não é apenas material: este corpo encerra a possibilidade de ser imaterializado pelo enxerto do véu imaginário e da palavra.
Esse enigmático poder de esquecimento - que o analista articula ao esquecimento primordial do recalque originário - é a primeira pergunta que o analista recebe do artista quando este se faz dançarino: não é o artista aquele que nos instrui sobre a aptidão do corpo para recusar o peso ao dar testemunho de sua parte de imaterialidade?
Se. na primeira face que apresenta, o sintoma humano, ao privilegiar o sofrimento ligado ao corpo, é questionado pelo destino que a dança outorga ao corpo, em sua segunda face, o sintoma humano, estando ligado à perturbação da imagem do homem, recebe, agora do pintor, outra questão fundamental.
O sofrimento ligado à imagem do corpo prende-se ao fato de que esta imagem é estruturada como fundamentalmente dependente do olhar do outro. A expressão desta dependência toma, de modo geral, duas direções antonômicas.
Na primeira destas direções, o sujeito é conduzido à seguinte pergunta: "Serei eu conforme ao que o olho do Outro espera de mim? Tenho eu boa forma, o bom uniforme?".
A experiência nos ensina que, para adquirir tal conformidade, o sujeito está pronto a se renegar. Para isto, uma vez que a função do olhar é a de procurar uma imagem, fundamentalmente silencioso, ele está pronto a desqualificar-se como ser falante e, se este sujeito é uma mulher, a obedecer, como imagem, à seguinte injunção: "Seja bela e cale-se!". O sentido dessa auto-desqualificação é: "Consinto no silêncio já que consinto em não ser mais do que imagem visível, quer dizer, coisa despojada de invisível. Na verdade, sei que o que fala não poderia ser senão invisível".
A segunda direção que pode tomar o sofrimento do sujeito exposto ao olhar prende-se ao que lhe acontecerá quando, deixando-se trnasparente sob o "olho mau" medusante, tem então a experiência de perder aquela coisa viva que há nele e que é a sua parte de invisibilidade. A partir daí, sua imagem, despojada de sua parte de inimaginável, desaparece, pois sua consistência visível vinha-lhe apenas da existência de sua carga de invisível.
Que acontece ao sujeito que é visto de todos os lados por um olhar onividente, onisciente? Ele é medusado, tornado estátua, reduzido à imobilidade. O deslocamento e o movimento só se tornarão de novo possíveis para ele caso reencontre, por um trabalho psicanalítico, aquele ponto para além da imagem que é, como indica o segundo mandamento da lei mosaica, a palavra.
Desse terceiro ponto em que a palavra e a imagem cessam de estar dissociadas, pode aparecer um outro tipo de olhar, completamente diverso daquele do "olho mau": esse novo olhar que o analisando encontra no fim da análise é, contrariamente ao olhar que tudo sabe, um olhar que não sabe tudo e que está, por isto mesmo, disposto a poder não conhecer, mas reconhecer o que há de invisível no sujeito. Poder-se-ia dizer que o advento deste olhar se dá como lhar que ouve: manifesta-se pela primeira vez na cena trágica grega quando Apolo - deus da imagem - consegue "ver" o que ouve: a música de Dionisio.
É neste ponto que o analista que se interroga sobre a estrutura do olhar que ele próprio pousa no analisando encontra a questão do olhar do pintor: não é o pintor aquele que sabe ouvir o invisível e sabe deixá-lo com algumas manchas de cor?
O terceiro sentido em que se experimenta o sintoma é aquele que se induz no sujeito quando a palavra deste, desajeitada, intimidada pelo temor de não articular, de gaguejar, prefere esconder-se no silêncio para não correr o risco de fazer ouvir, para além do que as palavras poderiam fazer escutar, a dimensão do inaudito própria do inconsciente.
Como pode um sujeito, na verdade, assumir o reconhecimento de que é instituído não pelo domínio do que pensa, mas pelo que diz, já que, do momento em que ele se permite falar verdadeiramente, descobre que não é senhor da palavra, pois é ela que é a sua senhora: é a palavra que dispõe do poder criador de transgredir o código e de deixar aparecerem significações inéditas.
É à medida que é levado a reconhecer que o fato de não assumir o poder metafórico da palavra é indutor do sintoma humano, que o analisando é levado a recolher do poeta, do músico, a seguinte pergunta: de que é feita a sua relação com a linguagem se, por sua prática, ele é conduzido a subverter o que a prosa faz ouvir de sensato, fazendo ouvir, pelo poema e pela música, o que o poema ou a música transmite de propriamente inaudito?
(In: Nota azul - Freud, Lacan e a Arte. Rio de Janeiro: Contra Capa, 1997, p.19-26).

domingo, 7 de abril de 2013

O sonho de Irma e a pulsão invocante - Alain Didier-Weill

"Lacan supõe, naquele que vai se tornar analista, um desejo X ligado ao instinto de morte, do qual dá uma ilustração marcante no Seminário Le mois dans la théorie de Freud et dans la technique de la psychanalyse, ao comentar o sonho de Irma: Lacan interpreta a produção do significante trimetilamina, como a produção de um significante no plano do qual acontecem o que ele chama uma "liberação do sujeito" e uma "saída da culpa inconsciente".
Eis a maneira como Lacan comenta a produção de trimetilamina: "Tal como um oráculo, a fórmula não dá resposta alguma a qualquer coisa que seja". Mas o modo pelo qual ela se enuncia, seu caráter enigmático, é que é a resposta do sentido do sonho. Pode-se decalcar a formulação islâmica: "Não há outro Deus senão Deus: não há outra palavra, outra solução para o vosso problema, senão a palavra".
Uma outra voz toma a palavra...Poderíamos chamar de Nemo este sujeito fora do sujeito que designa toda a estrutura do sonho...Não há outra palavra do sonho senão a própria natureza do simbólico...Esta palavra não quer dizer senão o que é, uma palavra...
Seria uma palavra delirante se o sujeito sozinho tentasse achar aí, à maneira de um ocultista, a designação secreta do ponto onde está, na verdade, a solução do mistério do sujeito e do mundo. Mas ele não está sozinho.
É dentro dessa possibilidade de dirigir-se a - pela qual o sujeito sai da solidão - que Freud, a nosso ver, entra na dimensão de uma invocação que estrutura não a demanda, mas a pulsão invocante.
A diferença entre ambas está em que a demanda visa um Outro que deve estar imediatamente presente, ao passo que a invocação dorige-se a um Outro que não está presente senão como por-vir. A pulsão invocante é assim transferência no tempo.
O paradoxo temporal ligado à produção do significante trimetilamina é o seguinte: de um lado, por intermédio deste significante, o sujeito se dirige a um Outro que ainda não está presente, mas cujo advento é esperado em virtude de uma certa transferência no tempo; por outro lado, nesta invocação para o futuro, o Sujeito toma nota, no presente, do fato de que ele está fazendo uma aposta com a qual afirma que acredita "nisso".
Acreditar nisso, e não acreditar "nele" ou "nela", é a definição mais sucinta que podemos dar ao amor".
(In: Nota Azul - Freud, Lacan e a Arte. Rio de Janeiro: Contra Capa, 1997, p.15-6).

terça-feira, 2 de abril de 2013

Arte e Filosofia - Alain Badiou - (III)

 
Mas, ao mesmo tempo em que é potência, toda verdade é uma impotência. Pois aquilo sobre o que ela tem jurisdição não poderia ser uma totalidade.
Verdade e totalidade serem incompatíveis é, decerto, o ensinamento decisivo - ou pós-hegeliano - da modernidade.
Jacques Lacan exprime essa idéia em seu aforismo famoso: a verdade não pode se dizer "por inteiro", só pode se meio-dizer. Mallarmé, por sua vez, criticava os parnasianos, que, como dizia, "tomam a coisa por inteiro e mostram-na". Por aí, acrescentava, "perdem o mistério".
Como quer que seja que uma verdade seja verdade, não se poderia pretender que ela a investisse "por inteiro", que fosse sua mostração integral. O poder de revelação de um poema enreda-se em torno de um enigma, de modo que a verificação desse enigma faça todo o real de impotência da potência do verdadeiro. Nesse sentido, o "mistério nas letras" é um verdadeiro imperativo. Quando Mallarmé sustenta que "sempre deve haver enigma em poesia", funda uma ética do mistério que é o respeito, pelo poder de uma verdade, de seu ponto de impotência.
O mistério é de fato que toda verdade poética deixe em seu centro o que ela não tem o poder de fazer vir à tona.
Mais geralmente, uma verdade sempre encontra, em um ponto do que investe, o limite em que se prova que ela é esta verdade singular, e não a consciência de si do Todo.
O fato de que toda verdade é sempre um processo singular, embora ela proceda indefinidamente, é atestado no real por ao menos um ponto de impotência, ou, como diz Mallarmé, "uma rocha, falso solar de imediato evaporado em brumas que impôs um limite no infinito".
Uma verdade se depara com a rocha de sua própria singularidade, e é apenas aí que se enuncia, como impotência, que uma verdade existe.
Chamemos esse deparar o inominável. O inominável é aquilo cuja nomeação uma verdade não pode forçar. Aquilo cuja transformação em verdade ela não pode antecipar.
Todo regime da verdade baseia-se no real em seu inominável próprio.
 
(In: Pequeno Manual de inestética. São Paulo: Estação Liberdade, 2002, p.38-9).

 
"Já que se há de escrever, que pelo menos não se esmaguem com palavras as entrelinhas. O melhor ainda não foi escrito. O melhor está nas entrelinhas" - Clarice Lispector


segunda-feira, 1 de abril de 2013

O Dia que durou 21 anos - (filme)



Este documentário mostra a influência do governo dos Estados Unidos no Golpe de Estado no Brasil em 1964. A ação militar que deu início à ditadura contou com a ativa participação de agências como CIA e a própria Casa Branca. Com documentos secretos e gravações originais da época, o filme mostra como os presidentes John F. Kennedy e Lyndon Johnson se organizaram para tirar o presidente João Goulart do poder e apoiar o governo do marechal Humberto Castelo Branco.
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Parte 1:
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Parte 2:
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Parte 3:

domingo, 31 de março de 2013

Arte e Filosofia - Alain Badiou (II)

 
"Ora, o que se constata? Que, no esquema romântico, a relação da verdade com a arte é de fato imanente (a arte expõe a descida finita da Idéia), mas não singular (pois se trata da verdade, e o pensamento do pensador não se coaduna com nada que difere do que o dizer do poeta desvela). Que, no didatismo, a relação é certamente singular (só a arte pode expor uma verdade sob a forma de aparência), mas de modo algum imanente, pois em definitivo a posição da verdade é extrínseca. E que, finalmente, no classicismo, trata-se apenas do que uma verdade coage no imaginário, sob a forma do verossímil.
Nos esquemas herdados, a relação das obras artísticas com a verdade jamais consegue ser ao mesmo tempo singular e imanente.
Afirmar-se-á, portanto, essa simultaneidade. O que também se diz: a própria arte é um procedimento de verdade. Ou ainda: a identificação filosófica da arte depende da categoria de verdade.
A arte é um pensamento cujas obras são o real (e não o efeito). E esse pensamento, ou as verdades que ele ativa, são irredutíveis às outras verdades, sejam elas científicas, políticas ou amorosas. O que também quer dizer que a arte, como pensamento singular, é irredutível à filosofia.
Imanência: a arte é rigorosamente coextensiva às verdades que prodigaliza.
Singularidade: essas verdades não são dadas em nenhum outro lugar a não ser na arte.
Nessa visão das coisas, o que ocorre com o terceiro termo do entrelaçamento, a função educativa da arte? A arte educa simplesmente porque produz verdades e porque "educação" jamais quis dizer nada além (a não ser nas montagens opressivas ou pervertidas) do seguinte: dispor os conhecimentos de tal maneira que alguma verdade possa se estabelecer.
A coisa pela qual a arte educa é simplesmente a sua existência.
Trata-se apenas de encontrar essa existência, o que quer dizer: pensar um pensamento.
A filosofia deve, a partir de então, no que diz respeito à arte e a todo procedimento de verdade, mostrá-Ia como tal. A filosofia é de fato a intermediária dos encontros com as verdades, a alcoviteira do verdadeiro. E da mesma maneira que a beleza deve estar na mulher encontrada, mas não é absolutamente exigida da alcoviteira, as verdades são artísticas, científicas, amorosas ou  políticas, e não filosóficas".
Continua...
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 (In.Pequeno manual de inestética. São Paulo: Estação Liberdade, 2002, p.20-1).
 


sábado, 30 de março de 2013

Arte e Filosofia - Alain Badiou



Por "inestética" entendo uma relação da filosofia com a arte, que, colocando que a arte é, por si mesma, produtora de verdades, não pretende de maneira alguma torná-la, para a filosofia, um objeto seu. Contra a especulação estética, a inestética descreve os efeitos estritamente intrafilosóficos produzidos pela existência independente de algumas obras de arte.

Alain Badiou, abril de 1998


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Laço que desde sempre é alterado por um sintoma, o de uma oscilação, de um batimento.
Nas origens, existe o repúdio sustentado por Platão acerca do poema, do teatro, da música. De tudo isso, deve-se dizer que o fundador da filosofia, evidentemente refinado conhecedor de todas as artes de seu tempo, só dá importância, na República, à música militar e ao canto patriótico. Na outra extremidade, encontra-se uma devoção piedosa em relação à arte, um ajoelhar-se contrito do conceito, pensado como niilismo técnico, diante da palavra poética que oferece sozinha o mundo ao Aberto latente de seu próprio desamparo.
 
 
Mas o sofista Protágoras já designava, afinal, o aprendizado artístico como a chave da educação. Havia uma aliança de Protágoras e de Simônides, o poeta cuja impostura o Sócrates de Platão tenta frustrar e sujeitar a seus próprios fins a intensidade pensável. Vem-me à mente uma imagem, uma matriz analógica do sentido: filosofia e arte são historicamente acopladas tal qual são, segundo Lacan, o Mestre e a Histérica. Sabe-se que a histérica vem dizer ao mestre: "A verdade fala por minha boca, estou aqui, e tu, que sabes, diga-me quem sou." E adivinha-se que, por maior que seja a sutileza douta da resposta do mestre, a histérica lhe dará a entender que ainda não é isso, que seu aqui escapa à apreensão, que se deve retomar tudo e redobrar esforços para lhe agradar. Nesse momento, ela ruma para o mestre e torna-se sua cortesã. E, da mesma maneira, a arte já está sempre aqui, dirigindo ao pensador a questão muda e cintilante de sua identidade, enquanto, por sua constante invenção, por sua metamorfose, ela declara-se decepcionada com tudo o que o filósofo enuncia a seu respeito. O mestre da histérica praticamente não tem outra escolha, caso demonstre má vontade à servidão amorosa, à idolatria que deve pagar com uma produção de saber estafante e sempre decepcionante, a não ser lhe passar o cetro. E, da mesma maneira, o mestre filósofo permanece dividido, no que diz respeito à arte, entre idolatria e censura. Ou dirá aos jovens, seus discípulos, que o cerne de qualquer educação viril da razão é manter-se afastado da Criatura, ou acabará por conceder que só ela, esse brilho opaco do qual só podemos ser cativos, nos ensine sobre o viés por onde a verdade comanda que o saber seja produzido.
Continua.....
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(Pequeno manual de inestética. Sao Paulo: Estaçao cultural, 2002, p.11-2).