Simone de Beauvoir & sua inseparável Zaza Mais sobre o livro: https://revistacult.uol.com.br/home/as-inseparaveis-simone-de-beauvoir/ |
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"Rogelio era um negro grande e musculoso, com uma cara zangada permanente. Quando Damaris chegou em casa com a cachorra, ele estava do lado de fora, limpando o motor da roçadeira. Nem sequer se deu o trabalho de cumprimentá-la e disparou:
- Outro cachorro? Nem pense que eu vou cuidar dele.
- `Por acaso alguém pediu alguma coisa a você? - retrucou Damaris, seguindo direto para o casebre.
A seringa não funcionou. O braço de Damaris era forte, porém desajeitado, e os seus dedos tão gordos como o resto de sua pessoa. Cada vez que empurrava, o êmbolo ia até o final e o jorro de leite saía com tudo do focinho da cachorra, derramando-se por todo lado. Como a cachorra não sabia lamber, Damaris não podia lhe dar o leite em uma vasilha, e as mamadeiras vendidas no povoado eram para bebês humanos, grandes demais. Seu Jaime lhe recomendou que usasse um conta-gotas, e ela tentou fazer isso, mas bebendo dessa forma a cachorra não encheria a barriga nunca. Então ela teve a ideia de embeber pão no leite e deixar que a cachorra o sugasse. Essa foi a solução: ela o devorou inteiro.
O casebre onde moravam não ficava na praia, e sim em um rochedo de mata onde as pessoas brancas da cidade tinham casas de veraneio grandes e bonitas, com jardins, caminhos de pedras e piscinas. Para chegar ao povoado, descia-se por uma escadaria comprida e íngreme que, como chovia muito, tinham que esfregar com frequência para retirar a lama e par que não ficasse escorregadia. Depois era preciso atravessar a angra, um braço de mar largo e caudaloso como um rio, que se enchia e esvaziava com a maré.
Naqueles dias a maré estava alta pela manhã, de modo que, para comprar o pão para a cachorrinha, Damaris tinha que se levantar na primeira hora, sair do casebre já carregando o remo, descer a escada com ele no ombro, empurrar a canoa desde o cais, colocá-la na água, remar até o outro lado, amarrar a canoa a um coqueiro, levar o remo no ombro até a casa de algum pescador que morasse junto à angra, pedir ao pescador, sua mulher ou às crianças que cuidassem dela, ouvir as lamúrias e as histórias do vizinho e atravessar meio povoado a pé, até a venda de seu Jaime...E a mesma coisa na volta. Todos os dias, mesmo sob a chuva.
Durante o dia, Damaris levava a cachorra enfiada no sutiã, entre os seios macios e fartos, para mantê-la quentinha. à noite, deixava-a na caixa de papelão que seu Jaime tinha dado a ela, com uma garrafa de água quente e a camiseta usada por ela naquele dia, para que não sentisse falta de seu cheiro.
O casebre em que moravam era de madeira e estava em mau estado. Quando caía uma tempestade, tremia com os trovões e balançava com o vento, a água entrava pelas goteiras do teto e pelas frestas nas tábuas das paredes, tudo ficava frio e úmido, e a cadela punha-se a choramingar. Fazia muito tempo que Damaris e Rogelio dormiam em quartos separados, e nestas noites ela se levantava depressa, antes que ele pudesse dizer ou fazer algo. Tirava a cachorra da caixa e ficava com ela na escuridão, acarinhando-a, morta de susto por causa das explosões dos raios e da fúria do vendaval, sentindo-se diminuta, menor e menos importante no mundo do que um grão de areia do mar, até que a cachorra se aquietava.
Também a acarinhava de dia, à tarde, depois que acabava as tarefas da manhã e o almoço, e sentava-se em uma cadeira de plástico para assistir às novelas com ela no colo. Quando estava no casebre, Rogelio a via passando os dedos pelo dorso da cachorra, mas não fazia nem dizia nada".
(In. A cachorra. Pilar Quintana. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020, pp.16-18).
Eu fui o sol das cinco irmãs de minha irmã, o único varão, o queridinho dessas doces fofoqueiras que babavam sobre mim. Nunca fiquei sem uma refeição, nem careci de roupas ou abrigo, nunca fui acometido por nenhuma doença séria, como a pólio, que assolava a cidade. Eu não tinha síndrome de Down como um moleque da minha sala, nem era corcunda como o pequeno Jenny ou sofria de alopecia como o Schartz. Eu era saudável, popular, bem atlético, sempre o primeiro a ser escolhido nas esquipes esportivos. Jogava bola, corria e, ainda assim, acabei me tornando nervoso, medroso, um caco emocional, mantendo a compostura por um fio, um misantropo, claustrofóbico, isolado, amargurado, um pessimista impecável. Algumas pessoas veem o copo meio vazio; outras veem meio cheio. Eu sempre vi o caixão meio cheio. Das milhares de reações naturais do corpo, eu consegui evitar quase todas, exceto a número 682: o mecanismo de negação. Minha mãe falava que não conseguia entender. Dizia que eu era um garotinho doce e animado até uns cinco anos, quando mudei para um moleque feio, azedo, chato e de ovo virado.
Mas não há trauma na minha vida, nada de terrível que tenha ocorrido e me transformado de um garotinho sardento sorridente vestindo calções e sempre com uma vara de pesca em uma das mãos num lorpa cronicamente insatisfeito. Especulo que, por volta dos cinco anos, eu tenha tomado consciência da moralidade e percebido que, afe, u não pedi isso. Nunca concordei em ser finito. Se você não se importar, quero meu dinheiro de volta. Conforme fiquei mais velho, não apenas a extinção, mas também a falta de sentido da existência se tornaram mais claras para mim. Eu me deparei com a mesma pergunta que incomodava o antigo príncipe da Dinamarca: por que sofrer com os tiros e flechadas quando posso apenas molhar meu nariz, enfiá-lo numa tomada e nunca mais ter que lidar com a ansiedade, o sofrimento ou o frango cozido da minha mãe? Hamlet escolheu não fazer isso porque temia o que poderia acontecer no além. E então, dada minha profunda falta de apreço pela condição humana e seu doloroso absurdo, por que seguir com isso? No fim, eu não pude achar uma razão lógica e finalmente cheguei à conclusão de que, como humanos, simplesmente somos programados para resistir à morte. O sangue vence o cérebro. Não há razão lógica par se prender à vida, mas quem se importa com o que a cabeça diz quando o coração te pergunta: "Viu a Lola naquela minissaia?". Por mais que eu resmungue, reclame e insista firmemente que a vida é um pesadelo sem sentido de sofrimento e lágrimas, se um homem entrasse na sala com uma faca para nos matar, nós insistentemente reagiríamos. Nós o agarraríamos e lutaríamos com cada grama de nossa energia para desarmá-lo e sobreviver. (Pessoalmente, eu correria). Isso, eu insisto, é uma propriedade estrita de nossas moléculas. Agora, você já deve ter percebido que não apenas não sou um intelectual, como também não sou uma companhia divertida nas festas" (pp.15-16).
(In. Autobiografia. Rio de Janeiro: Globo Livros: 2020).
Pavese matou-se num verão em que nenhum de nós estava em Turim. Preparara e maquinara as circunstâncias que diziam respeito à sua morte, como alguém que prepara e predispõe o curso de um passeio ou de uma noitada. Não gostava de que houvesse nos passeios e nas noitadas nada de imprevisto ou de casual. Quando ele, eu, os Balbo e o editor íamos passear na colina irritava-se muito se algo desviava o curso predisposto por ele, se alguém chegava tarde ao encontro, se mudávamos o programa de repente, se se juntava a nós uma pessoa imprevista, se uma circunstância fortuita nos levava a comer, em lugar do restaurante que ele escolhera previamente, na casa de algum conhecido encontrado inesperadamente pelo caminho. O imprevisto incomodava-o. Não gostava de ser pego de surpresa.
Falara em se matar durante anos. Nunca ninguém acreditou nele. Quando vinha à nossa casa, minha e de Leone, comendo cerejas, e os alemães tomavam a França, já então falava nisso. Não pela França, não pelos alemães, não pela guerra assaltando a Itália. Tinha medo da guerra, mas não o suficiente para se matar por causa dela. Porém, continuou tendo medo da guerra, mesmo depois que a guerra tinha acabado havia muito tempo: como de resto todos nós. Pois logo que a guerra terminou, aconteceu de voltarmos imediatamente a ter medo de uma nova guerra, e a pensar sempre nisso. E ele temia uma nova guerra mais do que nós todos. E nele o medo era maior do que em nós: nele, o medo era o turbilhão do imprevisto e do incognoscível, que parecia horrendo à lucidez de seu pensamento; águas escuras, turbulentas venenosas nas margens despojadas de sua vida.
No fundo, não tinha nenhum motivo real para se matar. Mas juntou mais motivos e calculou a soma deles, com fulminante exatidão, e juntou-os novamente e novamente viu, assentindo com seu sorriso maligno, que o resultado era idêntico e portanto exato. Olhou até além de sua vida, nos nossos dias futuros, olhou como iriam se comportar as pessoas em relação aos seus livros e à sua memória. Olhou para além da morte, como os que amam a vida e não sabem apartar-se dela, e mesmo pensando na morte não vão imaginando a morte, mas a vida. Ele, no entanto, não amava a vida, e aquele seu olhar para além da própria morte não era amor pela vida, mas um cálculo cuidadoso de circunstâncias para que nada, nem mesmo depois de morto, pudesse pegá-lo de surpresa" - (pp.216-218).
(In. Natália Ginzburg. Léxico familiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2018).
Epígrafe
Sou bem nascido. Menino,
Fui, como os demais, feliz.
Depois, veio o mau destino
E fez de mim o que quis.
*
Veio o mau gênio da vida,
Rompeu em meu coração, Levou tudo de vencida,
Rugiu como um furacão,
*
Turbiu, partiu, abateu,
Queimou sem razão nem dó -
Ah, que dor!
Magoado e só,
- Só! - meu coração ardeu:
*
Ardeu em gritos dementes
Na sua paixão sombria...
E dessas horas ardentes
Ficou esta cinza fria.
*
- Esta pouca cinza fria... (1917, p.25).
Desencanto
Eu faço versos como quem chora
De desalento...de desencanto...
Fecha o meu livro, se por agora
Não tens motivo nenhum de pranto.
*
Meu verso é sangue. Volúpia ardente...
Tristeza esparsa...remorso vão...
Dói-me nas veias. Amargo e quente,
Cai, gota a gota, do coração.
*
E nestes versos de angústia rouca
Assim dos lábios a vida corre,
Deixando um acre sabor na boca.
*
- Eu faço versos como quem morre. (1912, p.27).
Desesperança
Esta manhã tem a tristeza de um crepúsculo
Como dói um pesar em cada pensamento!
Ah, que penosa lassidão em cada músculo...
*
O silêncio é tão largo, é tão longo, é tão lento
Que dá medo...O ar, parado, incomoda, angustia...
Dir-se-ia que anda no ar um mau pressentimento.
*
Assim deverá ser a natureza um dia,
Quando a vida acabar e, astro acabado, a Terra
Rodar sobre si mesma estéril e vazia.
*
O demônio sutil das nevroses enterra
A sua agulha de aço em meu crânio doído.
Ouço a morte chamar-me e esse apelo me aterra...
*
Minha respiração se faz como um gemido.
Já não entendo a vida, e se mais a aprofundo,
Mais a descompreendo e não lhe acho sentido.
*
Por onde alongue o meu olhar de moribundo,
Tudo a meus olhos toma um doloroso aspecto:
E erro assim repelido e estrangeiro no mundo.
*
Vejo nele a feição fria de um desafeto.
Temo a monotonia e apreendo a mudança.
Sinto que a minha vida é sem fim, sem objeto...
*
- Ah, como dói viver quando falta a esperança! - (1912, p. 126).
Obs: "Cinza das horas" é o primeiro livro publicado de Manuel Bandeira. Abaixo a capa da primeira edição de 1917:
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"Posso viver por você? Tê-la dentro de meu corpo para que viva os cinquenta ou sessenta anos que foram roubados? Não quero sua lembrança, quero viver sua vida, ser você, que ame, sinta e possa palpitar dentro de mim, que cada gesto meu seja um gesto seu, que minha voz seja sua voz. Vou me anular, desaparecer para que você tome posse de mim, que sua incansável e alegre bondade substitua completamente meus medos antigos, minhas pobres ambições, minha vaidade exausta" - (p.419).
(In. Paula. Isabel Allende. Rio de Janeiro: BestBolso, 2010).
"Se é correto que a morte não existe e que somente morremos quando nos esquecem, minha filha viverá por muito tempo" - (Isabel Allende no Prólogo do livro Cartas à Paula. Rio de Janeiro: Bertrand, 1997, p.22).
"Mas tudo sempre foi por demais obrigatório para que pudesse me sentir feliz" - (p.10).
"Porque já aprendi que meus estados de pré-explosão nem sempre conduzem à explosão. às vezes terminam numa humilhação lúcida, numa aceitação irremediável das circunstâncias e de suas diversas e agravantes pressões. Gosto, no entanto, de me convencer de que não devo me permitir explosões, de que devo freá-las radicalmente, sob pena de perder meu equilíbrio. Então saio como saí hoje, numa encarniçada busca do ar livre, do horizonte, de sei lá quantas coisas mais. Bom, às vezes não chego ao horizonte e me conformo com me acomodar à janela de um café e registrar a passagem de umas pernas bonitas" - (p.11).
"Francamente, não sei se creio em Deus. às vezes, imagino que, no caso de existir Deus, esta dúvida não o desgostaria. Na realidade, os elementos que ele (ou Ele?) mesmo nos deu (raciocínio, sensibilidade, intuição) não são em absoluto suficientes para nos garantir nem sua existência nem sua não-existência. Graças a um impulso do coração, posso acreditar em Deus e acertar, ou não acreditar em Deus e também acertar. E então? Talvez Deus tenha uma face de crupiê e eu seja apenas um pobre-diabo que joga no vermelho quando dá preto, e vice-versa" - (p.34).
"A felicidade, a verdadeira felicidade, é um estado muito menos angelical e até bem menos agradável do que tudo o que a gente sempre tende a sonhar. Ela diz que, em geral, as pessoas acabam se sentindo desgraçadas só por terem acreditado que a felicidade era uma permanente sensação de indefinível bem-estar, de êxtase de gozoso, de festival perpétuo. Não, diz ela, a felicidade é bastante menos (ou talvez bastante mais, só que, de todo modo, é outra coisa), e o fato é que, na verdade, muitos desses supostos desgraçados são felizes, mas não se dão conta, não o admitem, porque acreditam estar muito longe do bem-estar máximo. É algo semelhante ao que acontece com os desiludidos da Gruta Azul. A que eles imaginaram é uma gruta de fadas, não sabiam muito bem como era, só que era uma gruta de fadas e, ao chegarem la´, constataram que todo o milagre consiste em meter as mãos na água e ver que elas ficaram levemente azuis e luminosas" - (pp. 93-94).
"Uma vez, faz muitos anos, ouvi o mais velho deles dizer: "O grande erro de alguns homens de comércio é tratar seus empregados como se estes fossem seres humanos". Nunca me esqueci dessa frasezinha, simplesmente porque não a posso perdoar. Não só em meu nome, como também em nome de todo o gênero humano. Agora sinto a forte tentação de inverter a frase e pensar: "O grande erro de alguns empregados é tratar seus patrões como se estes fossem pessoas". Mas resisto a essa tentação. Não parecem, mas são. E pessoas dignas de uma odiosa piedade, da mais infame das piedades, porque a verdade é que formam para si uma casca de orgulho, uma embalagem repugnante, uma sólida hipocrisia, mas no fundo são ocos. Asquerosos e ocos. E padecem a mais horrível variante da solidão: a solidão daquele que nem sequer tem a si mesmo" - (p.137).
"É preciso gritar nos ouvidos das pessoas, já que sua aparente surdez é uma espécie de autodefesa, de covarde e malsã autodefesa. É preciso conseguir acordar nos outros a vergonha de si mesmos, substituir neles a autodefesa pela auto-repulsa" - (p.159).
"Ela me dava a mão e eu não precisava de mais nada. Bastava isso para que eu me sentisse bem acolhido. Mais do que beijá-la, mais do que nos deitarmos juntos, mais do que qualquer outra coisa, ela me dava a mão, e isso era amor" - (p.171).
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(In. A vida mentirosa dos adultos. Elena Ferrante. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020).
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Mais sobre o livro:
https://blog.intrinsecos.com.br/tag/a-vida-mentirosa-dos-adultos/
https://quatrocincoum.folha.uol.com.br/br/resenhas/l/como-e-feia-essa-menina
"Expliquei à professora que na sala de aula tudo era perto e que nada se distanciava de nada como nos montes de paisagem. Mas a professora negou. Disse-me que o rosto de cada um também era imenso como a paisagem e, visto com atenção, tinha distâncias até infinitas que importava tentar percorrer.
Nesse dia voltei da escola como se tivesse a tampa da cabeça aberta e os pensamentos me fugissem para o vento (...).
Percebi que para dentro de nós há um longo caminho e muita distância. Não somos nada feitos do mais imediato que se vê à superfície. Somos feitos daquilo que chega à alma e a alma tem um tamanho muito diferente do corpo.
Percebi que ver verdadeiramente uma pessoa obriga a um esforço como o de estarmos sentados nos nossos bancos a tomar conta do que passa pelos montes. Percebi que ver verdadeiramente uma pessoa também é como prevenir os fogos, como fazia o meu pai que, afinal, era guarda-florestal.
O rosto é mais turvo do que os céus e pode ser muito mais complexo do que saber exactamente de quem é um rebanho e se cresceu ou diminuiu. O rosto começa onde se vê e vai até onde já não há luz nem som. Por isso, por mais que observemos, ainda muita coisa nos há-de-escapar e o importante é que estejamos tão atentos quanto possível para nos conhecermos uns aos outros.
Conheci melhor o meu pai. Conheci melhor a minha mãe. Até conheci melhor o nosso cão, que era mesmo maluco, porque lho via no rosto e tudo. Entendi que o rosto é extenso e infinito, capaz de expressões que vamos conhecendo e outras que nunca vemos. Toda a vida precisamos de estar atentos, se assim não fizermos vamos perder muito do mais importante que acontece em nosso redor. Como se houvesse um incêndio mesmo diante de nós e nem sequer o percebêssemos antes que restem todas as coisas completamente queimadas" - (pp. 55-56).
"1. A primeira característica de um Ur-Fascismo é o culto da tradição. O tradicionalismo é mais velho que o fascismo (...).
2. O tradicionalismo implica a recusa da modernidade (...)
3. O irracionalismo depende também do culto da ação pela ação. A ação é bela em si e, portanto, deve ser realizada antes de e sem nenhuma reflexão (...)
4. Nenhuma forma de sincretismo pode aceitar críticas. O espírito crítico opera distinções, e distinguir é um sinal de modernidade. Na cultura moderna, a comunidade científica percebe o desacordo como instrumento de avanço dos conhecimentos. Para o Ur-Fascismo, o desacordo é traição.
5. O desacordo é, além disso, um sinal de diversidade. O Ur-Fascismo cresce e busca o consenso utilizando e exacerbando o natural medo da diferença. O primeiro apelo de um movimento fascista ou que está se ornando fascista é contra os intrusos. O Ur-Fascismo é, portanto, racista por definição (...)
6. O Ur-Fascismo provém da frustração individual ou social. Isso explica por que uma das características típicas dos fascismos históricos tem sido o apelo às classes médias frustradas, desvalorizadas por alguma crise econômica ou humilhação política, assustadas pela pressão dos grupos sociais subalternos (...).
7. Para os que se veem privados de qualquer identidade social, o Ur-Fascismo diz que seu único privilégio é o mais comum de todos: ter nascido em um mesmo país. Esta é a origem do "nacionalismo". Além disso, os únicos que podem fornecer uma identidade às nações são os inimigos. Assim, na raiz da psicologia Ur-Fascista está a obsessão da conspiração, possivelmente internacional. Os seguidores têm que se sentir sitiados. O modo mais fácil fazer emergir uma conspiração é fazer apelo à xenofobia. Mas a conspiração tem que vir também do interior: os judeus são, em geral, o melhor objetivo porque oferecem a vantagem de estar, ao mesmo tempo, dentro e fora (...)
8. Os adeptos devem sentir-se humilhados pela riqueza ostensiva e pela força do inimigo (...)
9. Para o Ur-Fascismo, não há luta pela vida, mas antes "vida para a luta". Logo, o pacifismo é conluio com o inimigo; o pacifismo é mau porque a vida é uma guerra permanente (p.44-52).
(In. Umberto Eco. O Fascismo eterno. Rio de Janeiro: Record, 2020).
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"Não esperar nada é o que de melhor alguém pode fazer contra qualquer tipo de opressão e só assim fui capaz de sobreviver a tudo" - (p.57).
"Passei mais de vinte anos sussurrando; uma dedicação comparável à de quando ele ainda era vivo, talvez maior, e comparável à de quando ele ainda era vivo, talvez maior, e agora eu entendo que não foi só para proteger os poemas do esquecimento. Foi também para continuar perto dele e ele perto de mim, para que um amor que sempre foi físico e erótico - a noite todas as nossas discordâncias se dissolviam - tivesse uma continuidade também concreta, pela voz e pelo som. Todo poema que falo me faz sentir mais redonda, as sílabas se reunindo na boca, passando pela língua me fazem subitamente bonita, as palavras sendo sopradas pelos círculos de fumaça, que assopro a cada tragada, me transformam rápido numa coquete. É patético, mas ainda tenho uma intimidade, eu que me dediquei a apagá-la" - (p.80).
(In. O que ela sussurra. São Paulo: Companhia das Letras, 2020).
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Para saber mais sobre o livro: