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quarta-feira, 14 de abril de 2021

A lua e as fogueiras - Cesare Pavese

"Desta vez ficou quieto, esticando os lábios para a frente, e somente quando lhe contei aquela história das fogueiras nos restolhos levantou a cabeça. "Claro que fazem bem", disse. "Despertam a terra".
"Mas Nuto", eu disse, "nem Cinto acredita nisso!".
No entanto, disse ele, não sabia o que era, se o calor ou a chama ou que os humores despertavam, o fato era que todas as culturas em cuja orla se acendia a fogueira davam uma colheita mais suculenta, mais viva.
"Essa é nova", disse eu. "Então você também acredita na lua?"
"Na lua", disse Nuto, "não há como não acreditar. Experimente cortar um pinheiro na lua cheia, os vermes o comem inteiro. Um tonel você tem de lavar quando a lua é jovem. Até os enxertos, se não se fizerem nos primeiros dias da lua, não pegam".
Então eu lhe disse que no mundo ouvira muitas histórias, mas as mais bobas eram essas. Era inútil ele criticar tanto o governo e as conversas dos padres, se depois acreditava nessas superstições, como os velhos do tempo de sua avó. E foi então que Nuto calmamente me disse que superstição é somente aquilo que faz mal e se alguém utilizasse a lua e as fogueiras para roubar os camponeses e mantê-los na ignorância, então seria ele o ignorante e deveria ser fuzilado na praça. Mas antes de falar eu devia voltar a ser camponês. Um velho como Valino podia não saber mais nada, mas a terra ele conhecia bem.
(...)
Sou um bobo, eu dizia, faz vinte anos que estou longe e esses lugares esperam por mim. Lembrei que desilusão fora caminhar pela primeira vez pelas ruas de Gênova - eu caminhava no meio e procurava um pouco de capim. O porto, este sim, estava lá, e também os rostos das moças, as lojas e os bancos, mas as canas, o cheiro da lenha, um pedaço da vinha, onde estavam? Eu também conhecia a história da lua e das fogueiras. Só que, dera-me conta, eu não sabia mais que a sabia".
(In. A lua e as fogueiras. São Paulo: Berlendis & Vertecchia, 2002, pp.60-61).

Cesare Pavese em 1950
 

terça-feira, 23 de março de 2021

As inseparáveis - Simone de Beauvoir

 

"Meus pais falavam comigo e eu falava com eles, mas não conversávamos; com Andrée eu tinha verdadeiras conversas, como papai tinha com mamãe à noite. Ela havia lido muitos livros durante a longa convalescença e me causou espanto, porque parecia acreditar que as histórias neles contadas haviam realmente acontecido: detestava Horácio e Polieuto, admirava Dom Quixote e Cyrano de Bergerac, como se tivessem existido em carne e osso. Em relação aos séculos passados também tinha opiniões categóricas. Gostava dos gregos, os romanos a aborreciam; insensível às desventuras de Luís XVII e família, comovia-se com a morte de Napoleão.
Muitas dessas opiniões eram subversivas, mas em vista de sua pouca idade, a escola as perdoava: "Essa menina tem personalidade", dizia-se no colégio (...). Tocava tão bem piano que logo foi colocada na categoria das alunas médias; também começava a ter aulas de violino. Não gostava de costurar, mas tinha jeito; fazia com competência balas de caramelo, biscoitos amanteigados, trufas de chocolate; apesar de franzina, sabia fazer pituetas, espacate e todo tipo de cambalhota. Mas o que aumentava seu prestígio a meus olhos eram certas características singulares cujo sentido nunca conheci: quando via um pêssego ou uma orquídea, ou se simplesmente alguém pronunciasse esses nomes diante dela, Andrée estremecia, seus braços se arrepiavam; então ela manifestava da maneira mais perturbadora o dom que recebera do céu e que me maravilhava: a personalidade. Em segredo, eu me dizia que Andrée era sem dúvida uma dessas crianças-prodígio cuja vida é contada depois em livros".

(In. As inseparáveis. Rio de Janeiro: Record, 2021, pp. 25-26).

Simone de Beauvoir & sua inseparável Zaza

Mais sobre o livro:
https://revistacult.uol.com.br/home/as-inseparaveis-simone-de-beauvoir/





quinta-feira, 11 de março de 2021

A estrangeira - Claudia Durastanti

 

"A descoberta da burguesia teve um impacto elétrico, neurótico, em mim, e daquele momento em diante tudo me pareceu uma traição. Do meu corpo em primeiro lugar: eu tinha melhorado, me nutri bem, então por que meu chefe me disse que eu comia como uma pobre?
Num longo artigo publicado na revista Nautilus, intitulado "Why Poverty Is Like a Disease", Christian H. Cooper, um homem de alta finança que hoje ganha mais de setecentos mil dólares por ano, mas que nasceu numa família paupérrima em Rockwood, no Tennessee, diz que emancipou somente graças aos professores e às bolsas de estudo, e conta por que o mito da meritocracia americana é, na verdade, uma fraude, desmistificada pela ciência.
A pobreza não é só uma condição social, é uma doença que afeta o plano biológico. Transmite-se de uma geração a outra pelos genes e outras formas impensadas, e condiciona o corpo num modo que nenhuma futura riqueza pode remediar. Dar a todos as mesmas condições no ponto de partida não é sempre suficiente, porque há uma diferença, oculta dentro de quem participa da corrida, que muitas vezes é ignorada. Na verdade, é a metáfora da corrida que cria um problema, é um clichê difícil de abandonar: ter crescido na pobreza não significa necessariamente ter vontade de chegar a algum lugar, ou chegar aonde todos pensam que você queira ir. Pode significar ficar parada no mesmo lugar, se é um lugar acolhedor, desejado e que garante todos os recursos necessários. Pode significar ter fome, mas não fome de sucesso, no mundo em que isso é entendido dessa forma pela maior parte das pessoas.  A própria ideia de "fome" e "sucesso" na mesma frase tem algo de farsa, de século passado. Lá, à espera, perto da partida, uma garota pode decidir ir embora para os bosques. Sua vida pode até ser um lindo desperdício; igualdade significa colocá-la em condições para que se torne uma astronauta, se quiser, mas também dar-lhe a possibilidade de exercitar o ócio de quem ainda não sabe bem o que quer fazer, e escrever artigos enquanto isso, sem uma casa deixada em herança pelos avós. Igualdade significa que os filhos dos operários não se tornem apenas médicos e advogados, mas também escritores subempregados e pintores à espera de descobrir se têm talento.
Há com frequência, no pobre que se emancipa de sua condição social, uma mentalidade de autosabotagem que se manifesta em forma de saudade.
Minha mãe sente orgulho, mas também rancor pela melhoria da minha condição social: quando eu trabalhava num escritório, ela suspirava sempre: "Bendita você que pode", me deixando aflita com sua resignação e lembrando os belos tempos em que era funcionária da Agip Petróleo; quando pedi demissão, ignorou meu mal-estar para me dizer que eu era uma decepção e um insulto à emancipação da mulher: "E o que você vai ser, uma manteúda?"
Eu reagia começando a desenvolver uma relação catastrófica com o dinheiro: assim que chegava, eu fazia de tudo para não vê-lo, não gerenciá-lo ou acumulá-lo. Não queria ter saudade de não ser mais como ela, acabada e também lamentosa. Mas eu tinha.
A pobreza é uma mancha nas células, um borrão no DNA. Nada se realinha, após uma adolescência passada na necessidade. Não se aprende a comer de um jeito diferente, mas como morta de fome. Toda vez que preciso deixar algo em meu prato porque o fizeram também os outros ou porque não tenho fome, se instaura em mim um desgosto: provoco em mim mesma uma violência e preciso contar até dez, senão não consigo.
(...)
Mas o que é a pobreza senão a impossibilidade de cometer erros com o dinheiro e dar à própria desordem o nome de excentricidade?
(...) Isso porque do pobre se espera não só que faça a revolução, como se tivesse tempo livre, em vez de dedicar toda a sua energia nervosa para entender como obter algo a mais, com todos os meios possíveis, mas que tenha também uma boa educação e se comporte bem" - (pp.220-223).

(In. A estrangeira. Cláudia Durastanti. São Paulo: Todavia, 2021)

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

A cachorra - Pilar Quintana (trecho)

 

"Rogelio era um negro grande e musculoso, com uma cara zangada permanente. Quando Damaris chegou em casa com a cachorra, ele estava do lado de fora, limpando o motor da roçadeira. Nem sequer se deu o trabalho de cumprimentá-la e disparou:

- Outro cachorro? Nem pense que eu vou cuidar dele.

- `Por acaso alguém pediu alguma coisa a você? - retrucou Damaris, seguindo direto para o casebre.

A seringa não funcionou. O braço de Damaris era forte, porém desajeitado, e os seus dedos tão gordos como o resto de sua pessoa. Cada vez que empurrava, o êmbolo ia até o final e o jorro de leite saía com tudo do focinho da cachorra, derramando-se por todo lado. Como a cachorra não sabia lamber, Damaris não podia lhe dar o leite em uma vasilha, e as mamadeiras vendidas no povoado eram para bebês humanos, grandes demais. Seu Jaime lhe recomendou que usasse um conta-gotas, e ela tentou fazer isso, mas bebendo dessa forma a cachorra não encheria a barriga nunca. Então ela teve a ideia de embeber pão no leite e deixar que a cachorra o sugasse. Essa foi a solução: ela o devorou inteiro.

O casebre onde moravam não ficava na praia, e sim em um rochedo de mata onde as pessoas brancas da cidade tinham casas de veraneio grandes e bonitas, com jardins, caminhos de pedras e piscinas. Para chegar ao povoado, descia-se por uma escadaria comprida e íngreme que, como chovia muito, tinham que esfregar com frequência para retirar a lama e par que não ficasse escorregadia. Depois era preciso atravessar a angra, um braço de mar largo e caudaloso como um rio, que se enchia e esvaziava com a maré.

Naqueles dias a maré estava alta pela manhã, de modo que, para comprar o pão para a cachorrinha, Damaris tinha que se levantar na primeira hora, sair do casebre já carregando o remo, descer a escada com ele no ombro, empurrar a canoa desde o cais, colocá-la na água, remar até o outro lado, amarrar a canoa a um coqueiro, levar o remo no ombro até a casa de algum pescador que morasse junto à angra, pedir ao pescador, sua mulher ou às crianças que cuidassem dela, ouvir as lamúrias e as histórias do vizinho e atravessar meio povoado a pé, até a venda de seu Jaime...E a mesma coisa na volta. Todos os dias, mesmo sob a chuva.

Durante o dia, Damaris levava a cachorra enfiada no sutiã, entre os seios macios e fartos, para mantê-la quentinha. à noite, deixava-a na caixa de papelão que seu Jaime tinha dado a ela, com uma garrafa de água quente e a camiseta usada por ela naquele dia, para que não sentisse falta de seu cheiro.

O casebre em que moravam era de madeira e estava em mau estado. Quando caía uma tempestade, tremia com os trovões e balançava com o vento, a água entrava pelas goteiras do teto e pelas frestas nas tábuas das paredes, tudo ficava frio e úmido, e a cadela punha-se a choramingar. Fazia muito tempo que Damaris e Rogelio dormiam em quartos separados, e nestas noites ela se levantava depressa, antes que ele pudesse dizer ou fazer algo. Tirava a cachorra da caixa e ficava com ela na escuridão, acarinhando-a, morta de susto por causa das explosões dos raios e da fúria do vendaval, sentindo-se diminuta, menor e menos importante no mundo do que um grão de areia do mar, até que a cachorra se aquietava.

  Também a acarinhava de dia, à tarde, depois que acabava as tarefas da manhã e o almoço, e sentava-se em uma cadeira de plástico para assistir às novelas com ela no colo. Quando estava no casebre, Rogelio a via passando os dedos pelo dorso da cachorra, mas não fazia nem dizia nada".

(In. A cachorra. Pilar Quintana. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020, pp.16-18).


Mais sobre o livro:

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

Autobiografia - Woody Allen

 


"Acabou que ter dois pais amorosos me deixou surpreendentemente neurótico. O porquê eu não sei.

Eu fui o sol das cinco irmãs de minha irmã, o único varão, o queridinho dessas doces fofoqueiras que babavam sobre mim. Nunca fiquei sem uma refeição, nem careci de roupas ou abrigo, nunca fui acometido por nenhuma doença séria, como a pólio, que assolava a cidade. Eu não tinha síndrome de Down como um moleque da minha sala, nem era corcunda como o pequeno Jenny ou sofria de alopecia como o Schartz. Eu era saudável, popular, bem atlético, sempre o primeiro a ser escolhido nas esquipes esportivos. Jogava bola, corria e, ainda assim, acabei me tornando nervoso, medroso, um caco emocional, mantendo a compostura por um fio, um misantropo, claustrofóbico, isolado, amargurado, um pessimista impecável. Algumas pessoas veem o copo meio vazio; outras veem meio cheio. Eu sempre vi o caixão meio cheio. Das milhares de reações naturais do corpo, eu consegui evitar quase todas, exceto a número 682: o mecanismo de negação. Minha mãe falava que não conseguia entender. Dizia que eu era um garotinho doce e animado até uns cinco anos, quando mudei para um moleque feio, azedo, chato e de ovo virado.

Mas não há trauma na minha vida, nada de terrível que tenha ocorrido e me transformado de um garotinho sardento sorridente vestindo calções e sempre com uma vara de pesca em uma das mãos num lorpa cronicamente insatisfeito. Especulo que, por volta dos cinco anos, eu tenha tomado consciência da moralidade e percebido que, afe, u não pedi isso. Nunca concordei em ser finito. Se você não se importar, quero meu dinheiro de volta. Conforme fiquei mais velho, não apenas a extinção, mas também a falta de sentido da existência se tornaram mais claras para mim. Eu me deparei com a mesma pergunta que incomodava o antigo príncipe da Dinamarca: por que sofrer com os tiros e flechadas quando posso apenas molhar meu nariz, enfiá-lo numa tomada e nunca mais ter que lidar com  a ansiedade, o sofrimento ou o frango cozido da minha mãe? Hamlet escolheu não fazer isso porque temia o que poderia acontecer no além. E então, dada minha profunda falta de apreço pela condição humana e seu doloroso absurdo, por que seguir com isso? No fim, eu não pude achar uma razão lógica e finalmente cheguei à conclusão de que, como humanos, simplesmente somos programados para resistir à morte. O sangue vence o cérebro. Não há razão lógica par se prender à vida, mas quem se importa com o que a cabeça diz quando o coração te pergunta: "Viu a Lola naquela minissaia?". Por mais que eu resmungue, reclame e insista firmemente que a vida é um pesadelo sem sentido de sofrimento e lágrimas, se um homem entrasse na sala com uma faca para nos matar, nós insistentemente reagiríamos. Nós o agarraríamos e lutaríamos com cada grama de nossa energia para desarmá-lo e sobreviver. (Pessoalmente, eu correria). Isso, eu insisto, é uma propriedade estrita de nossas moléculas. Agora, você já deve ter percebido que não apenas não sou um intelectual, como também não sou uma companhia divertida nas festas" (pp.15-16).


(In. Autobiografia. Rio de Janeiro: Globo Livros: 2020).

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

Cesare Pavese por Natalia Ginzburg


 "Pavese cometia erros mais graves que os nossos. Porque os nossos erros eram gerados por impulso, imprudência, estupidez e candura; e os erros de Pavese, ao contrário, nasciam da prudência, da astúcia, do raciocínio e da inteligência. Nada é tão perigoso quanto essa espécie de erro. Podem ser mortais, como foram para ele, porque é difícil voltar pelos caminhos em que se errou por astúcia. Os erros que se cometem por astúcia envolvem-nos estreitamente: a astúcia finca em nós raízes mais profundas do que a irreflexão ou a imprudência: como se desprender desses laços tão tenazes, tão apertados, tão profundos? A prudência, o raciocínio, a astúcia, têm o rosto da razão: o rosto, a voz amarga da razão, que argumenta com seus argumentos infalíveis, aos quais não há nada a responder, só a concordar.

Pavese matou-se num verão em que nenhum de nós estava em Turim. Preparara e maquinara as circunstâncias que diziam respeito à sua morte, como alguém que prepara e predispõe o curso de um passeio ou de uma noitada. Não gostava de que houvesse nos passeios e nas noitadas nada de imprevisto ou de casual. Quando ele, eu, os Balbo e o editor íamos passear na colina irritava-se muito se algo desviava o curso predisposto por ele, se alguém chegava tarde ao encontro, se mudávamos o programa de repente, se se juntava a nós uma pessoa imprevista, se uma circunstância fortuita nos levava a comer, em lugar do restaurante que ele escolhera previamente, na casa de algum conhecido encontrado inesperadamente pelo caminho. O imprevisto incomodava-o. Não gostava de ser pego de surpresa.

Falara em se matar durante anos. Nunca ninguém acreditou nele. Quando vinha à nossa casa, minha e de Leone, comendo cerejas, e os alemães tomavam a França, já então falava nisso. Não pela França, não pelos alemães, não pela guerra assaltando a Itália. Tinha medo da guerra, mas não o suficiente para se matar por causa dela. Porém, continuou tendo medo da guerra, mesmo depois que a guerra tinha acabado havia muito tempo: como de resto todos nós. Pois logo que a guerra terminou, aconteceu de voltarmos imediatamente a ter medo de uma nova guerra, e a pensar sempre nisso. E ele temia uma nova guerra mais do que nós todos. E nele o medo era maior do que em nós: nele, o medo era o turbilhão do imprevisto e do incognoscível, que parecia horrendo à lucidez de seu pensamento; águas escuras, turbulentas  venenosas nas margens despojadas de sua vida.

No fundo, não tinha nenhum motivo real para se matar. Mas juntou mais motivos e calculou a soma deles, com fulminante exatidão, e juntou-os novamente e novamente viu, assentindo com seu sorriso maligno, que o resultado era idêntico e portanto exato. Olhou até além de sua vida, nos nossos dias futuros, olhou como iriam se comportar as pessoas em relação aos seus livros e à sua memória. Olhou para além da morte, como os que amam a vida e não sabem apartar-se dela, e mesmo pensando na morte não vão imaginando a morte, mas a vida. Ele, no entanto, não amava a vida, e aquele seu olhar para além da própria morte não era amor pela vida, mas um cálculo cuidadoso de circunstâncias para que nada, nem mesmo depois de morto, pudesse pegá-lo de surpresa" - (pp.216-218).

(In. Natália Ginzburg. Léxico familiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2018).

A cinza das horas - Manuel Bandeira

 


Epígrafe

Sou bem nascido. Menino,

Fui, como os demais, feliz.

Depois, veio o mau destino

E fez de mim o que quis.

*

Veio o mau gênio da vida,

Rompeu em meu coração, Levou tudo de vencida,

Rugiu como um furacão,

*

Turbiu, partiu, abateu,

Queimou sem razão nem dó -

Ah, que dor!

Magoado e só,

- Só! - meu coração ardeu:

*

Ardeu em gritos dementes

Na sua paixão sombria...

E dessas horas ardentes

Ficou esta cinza fria.

*

- Esta pouca cinza fria... (1917, p.25).


Desencanto

Eu faço versos como quem chora

De desalento...de desencanto...

Fecha o meu livro, se por agora

Não tens motivo nenhum de pranto.

*

Meu verso é sangue. Volúpia ardente...

Tristeza esparsa...remorso vão...

Dói-me nas veias. Amargo e quente,

Cai, gota a gota, do coração.

*

E nestes versos de angústia rouca

Assim dos lábios a vida corre,

Deixando um acre sabor na boca.

*

- Eu faço versos como quem morre. (1912, p.27).


Desesperança

Esta manhã tem a tristeza de um crepúsculo

Como dói um pesar em cada pensamento!

Ah, que penosa lassidão em cada músculo...

*

O silêncio é tão largo, é tão longo, é tão lento

Que dá medo...O ar, parado, incomoda, angustia...

Dir-se-ia que anda no ar um mau pressentimento.

*

Assim deverá ser a natureza um dia,

Quando a vida acabar e, astro acabado, a Terra

Rodar sobre si mesma estéril e vazia.

*

O demônio sutil das nevroses enterra

A sua agulha de aço em meu crânio doído.

Ouço a morte chamar-me e esse apelo me aterra...

*

Minha respiração se faz como um gemido.

Já não entendo a vida, e se mais a aprofundo,

Mais a descompreendo e não lhe acho sentido.

*

Por onde alongue o meu olhar de moribundo,

Tudo a meus olhos toma um doloroso aspecto:

E erro assim repelido e estrangeiro no mundo.

*

Vejo nele a feição fria de um desafeto.

Temo a monotonia e apreendo a mudança.

Sinto que a minha vida é sem fim, sem objeto...

*

- Ah, como dói viver quando falta a esperança! - (1912, p. 126).


(In. A cinza das horas. São Paulo: Global, 2013).

Obs:  "Cinza das horas" é o primeiro livro publicado de Manuel Bandeira. Abaixo a capa da primeira edição de 1917:



domingo, 31 de janeiro de 2021

Paula - Isabel Allende


"Para que tantas palavras se você não pode me ouvir? Minha vida se faz ao ser contada e minha memória se fixa com a escrita; o que não ponho em palavras, no tempo se apaga (...) Jogo-me nestas páginas numa tentativa irracional de vencer meu terror, parece que, dando forma a esta devastação, poderei ajudar você a me ajudar, o meticuloso exercício da escrita pode ser a nossa salvação" - (pp. 16-17).

*

"Posso viver por você? Tê-la dentro de meu corpo para que viva os cinquenta ou sessenta anos que foram roubados? Não quero sua lembrança, quero viver sua vida, ser você, que ame, sinta e possa palpitar dentro de mim, que cada gesto meu seja um gesto seu, que minha voz seja sua voz. Vou me anular, desaparecer para que você tome posse de mim, que sua incansável e alegre bondade substitua completamente meus medos antigos, minhas pobres ambições, minha vaidade exausta" - (p.419).

(In. Paula. Isabel Allende. Rio de Janeiro: BestBolso, 2010).

"Se é correto que a morte não existe e que somente morremos quando nos esquecem, minha filha viverá por muito tempo" - (Isabel Allende no Prólogo do livro Cartas à Paula. Rio de Janeiro: Bertrand, 1997, p.22).


Sobre o livro:

segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

A trégua - Mário Benedetti

 

"Mas tudo sempre foi por demais obrigatório para que pudesse me sentir feliz" - (p.10).

"Porque já aprendi que meus estados de pré-explosão nem sempre conduzem à explosão. às vezes terminam numa humilhação lúcida, numa aceitação irremediável das circunstâncias e de suas diversas e agravantes pressões. Gosto, no entanto, de me convencer de que não devo me permitir explosões, de que devo freá-las radicalmente, sob pena de perder meu equilíbrio. Então saio como saí hoje, numa encarniçada busca do ar livre, do horizonte, de sei lá quantas coisas mais. Bom, às vezes não chego ao horizonte e me conformo com me acomodar à janela de um café e registrar a passagem de umas pernas bonitas" - (p.11).

"Francamente, não sei se creio em Deus. às vezes, imagino que, no caso de existir Deus, esta dúvida não o desgostaria. Na realidade, os elementos que ele (ou Ele?) mesmo nos deu (raciocínio, sensibilidade, intuição) não são em absoluto suficientes para nos garantir nem sua existência nem sua não-existência. Graças a um impulso do coração, posso acreditar em Deus e acertar, ou não acreditar em Deus e também acertar. E então? Talvez Deus tenha uma face de crupiê e eu seja apenas um pobre-diabo que joga no vermelho quando dá preto, e vice-versa" - (p.34).

"A felicidade, a verdadeira felicidade, é um estado muito menos angelical e até bem menos agradável do que tudo o que a gente sempre tende a sonhar. Ela diz que, em geral, as pessoas acabam se sentindo desgraçadas só por terem acreditado que a felicidade era uma permanente sensação de indefinível bem-estar, de êxtase de gozoso, de festival perpétuo. Não, diz ela, a felicidade é bastante menos (ou talvez bastante mais, só que, de todo modo, é outra coisa), e o fato é que, na verdade, muitos desses supostos desgraçados são felizes, mas não se dão conta, não o admitem, porque acreditam estar muito longe do bem-estar máximo. É algo semelhante ao que acontece com os desiludidos da Gruta Azul. A que eles imaginaram é uma gruta de fadas, não sabiam muito bem como era, só que era uma gruta de fadas e, ao chegarem la´, constataram que todo o milagre consiste em meter as mãos na água e ver que elas ficaram levemente azuis e luminosas" - (pp. 93-94).

"Uma vez, faz muitos anos, ouvi o mais velho deles dizer: "O grande erro de alguns homens de comércio é tratar seus empregados como se estes fossem seres humanos". Nunca me esqueci dessa frasezinha, simplesmente porque não a posso perdoar. Não só em meu nome, como também em nome de todo o gênero humano. Agora sinto a forte tentação de inverter a frase e pensar: "O grande erro de alguns empregados é tratar seus patrões como se estes fossem pessoas". Mas resisto a essa tentação. Não parecem, mas são. E pessoas dignas de uma odiosa piedade, da mais infame das piedades, porque a verdade é que formam para si uma casca de orgulho, uma embalagem repugnante, uma sólida hipocrisia, mas no fundo são ocos. Asquerosos e ocos. E padecem a mais horrível variante da solidão: a solidão daquele que nem sequer tem a si mesmo" - (p.137).

"É preciso gritar nos ouvidos das pessoas, já que sua aparente surdez é uma espécie de autodefesa, de covarde e malsã autodefesa. É preciso conseguir acordar nos outros a vergonha de si mesmos, substituir neles a autodefesa pela auto-repulsa" - (p.159).

 "Ela me dava a mão e eu não precisava de mais nada. Bastava isso para que eu me sentisse bem acolhido. Mais do que beijá-la, mais do que nos deitarmos juntos, mais do que qualquer outra coisa, ela me dava a mão, e isso era amor" - (p.171).


(In. A Trégua. Rio de Janeiro: Objetiva: 2007 - Selo Alfaguara).

terça-feira, 13 de outubro de 2020

Morra, amor - Ariana Harwicz

 

"Quero ir ao banheiro desde que acabou o almoço, mas é impossível fazer qualquer coisa além de ser mãe. E dá-lhe choro, chora, chora, chora, vou ficar doida. Sou mãe, pronto. Eu me arrependo, mas nem posso dizer. Para quem. Para ele, sentado os meus joelhos, metendo a mão no meu prato com seus restos frios, brincando com o osso de galinha? Não. Deixa isso que você engasga. Jogo um biscoitinho para ele. Ele me devolve. Tenho a boca cheia da sua saliva, de migalhas. Tenho tomate grudado no braço. Não o deixo terminar e lhe meto outro biscoito, ele se entala. Não me preocupo com o que possa pensar de mim. Eu o trouxe ao mundo, já é o suficiente. Sou mãe em piloto automático. Choraminga e é pior do que o choro. Eu o levanto, lhe ofereço um sorriso falso, aperto os dentes. Mamãe era feliz antes do bebê. Mamãe se levanta todos os dias querendo fugir do bebê e ele chora mais. Quero ir ao banheiro, mas esse cacarejo interminável, essa queixa, faz com que seja impossível. Que quer de mim. O que você quer? Não me deixa deixá-lo. Arqueia-se. Ontem tive que ir fazer com ele, hoje prefiro fazer na roupa. Ligo para o meu marido. Preciso de reforços. Enquanto ligo eu o levo pendurado em um ombro, vai me destroncar, gruda algo viscoso no meu umbigo. Atende, por favor, atende. Oi, escuta, amor, você precisa vir não aguento mais. Não, não dá para demorar tanto, você tem que vir já, você não está entendendo, não está querendo entender, não aguento até de noite, e desligo na cara dele porque ele se faz de desentendido; que pelo menos se assuste e venha. E ficamos rodando enredados no cabo para o caso de ele ligar e o levo até a porta para ver se passa alguém a quem eu o possa dar. Mas não há vizinhos como os que preciso. Há bastardos. E se eu bater n porta da velha que vive com as janelas gradeadas e suas tartarugas agressivas? Certamente poderia distraí-la, seria como ter uma televisão, como ir ao cinema. Ninguém passa, ninguém o quer, nada se mexe, ar parado dos diabos. Eu o deixo largado aos meus pés. Ele se retorce, se estica, grita comigo, arranca a fralda e desabotoa meus sapatos, come a tira de couro. Eu o olho como um caranguejo olha para um menino. Um carro de corrida passa com uma família. Têm a cara para fora das janelinhas. É noite e continuo apoiada na porteira, me vejo grávida, quando achava que levava dentro de mim uma gárgula. Eu me vejo parindo, expulsando. Picam a gente, tenho que entrar e acender a lareira, tirar o almoço repleto de formigas vermelhas levando comida para o inverno que vem. O pai nem piscou. Eu o levo nas costas e entro com ele suado e faminto, as unhas afiadas. Tenho que fazer macarrão ou sopa para ele, ir pegar alguma verdura na horta do vizinho, mas me dá leseira. Ser mãe é tão pouco excitante. Morro de vontade. Uma bola se forma dentro de mim. Eu o deixo cair, cruzo as pernas. Corro e me fecho. Chora como os asiáticos nos enterros rasgando as vestimentas. Não aguento e abro a porta para ele, penso quão asqueroso é isso tudo" - (pp.89-90).
(In. Morra amor. Ariana Harwicz. São Paulo: Editora Instante, 2019).

Mais sobre o livro:

sexta-feira, 25 de setembro de 2020

A vida mentirosa dos adultos - Elena Ferrante

 

"Eu detestava aquele Pai que havia criado seres tão frágeis, expostos continuamente à dor, facilmente perecíveis. Detestava que ele observasse como nós, fantoches, lidávamos com a fome, a sede, as doenças, os terrores, a crueldade, a soberba e até mesmo com os bons sentimentos que, sempre sob o risco da má-fé, ocultavam a traição. Detestava que ele tivesse tido um filho parido por uma mãe virgem e o expusesse ao pior, como acontecia com as mais infelizes das suas criaturas. Detestava que aquele filho, embora tivesse o poder de fazer milagres, usasse aquele poder para jogos poucos resolutivos, nada que realmente melhorasse a condição humana. Detestava que aquele filho tendesse a brigar com a mãe e não tivesse coragem de sentir raiva do pai. Detestava que o Senhor Deus deixasse aquele filho morrer entre tormentos atrozes e que, ao seu pedido de ajuda, não se dignasse a responder. Sim, era uma história que me deprimia. E a ressureição final? Um corpo horrivelmente massacrado que voltava à vida? Eu tinha horror dos ressuscitados, não conseguia mais dormir à noite. Por que vivenciar a experiência da morte se depois voltamos à vida por toda a eternidade? E que sentido tinha a vida eterna em meio a uma multidão de mortos ressuscitados? Era mesmo uma recompensa ou uma condição de intolerável horror? Não, não, o pai que residia no céu era exatamente como o pai desafeiçoado dos versículos de Mateus e de Lucas, aquele que dá pedras, serpentes e escorpiões ao filho que tem fome e pede pão. Se eu conversasse a respeito com meu pai, corria o risco de acabar dizendo: esse Pai, papai, é pior do que você. Por isso, eu justificava todas as criaturas, até as piores. A condição delas era dura e, quando ainda assim conseguiam exprimir, de dentro do seu lodo, grandes sentimentos verdadeiros, eu ficava do lado delas" - (pp. 261-262).

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(In. A vida mentirosa dos adultos. Elena Ferrante. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020).

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Mais sobre o livro:

https://istoe.com.br/a-vida-mentirosa-dos-adultos-reafirma-paixao-e-coragem-na-voz-de-elena-ferrante/

https://blog.intrinsecos.com.br/tag/a-vida-mentirosa-dos-adultos/

https://quatrocincoum.folha.uol.com.br/br/resenhas/l/como-e-feia-essa-menina

sexta-feira, 11 de setembro de 2020

Contos de cães e maus lobos - Valter Hugo Mãe

 

"Expliquei à professora que na sala de aula tudo era perto e que nada se distanciava de nada como nos montes de paisagem. Mas a professora negou. Disse-me que o rosto de cada um também era imenso como a paisagem e, visto com atenção, tinha distâncias até infinitas que importava tentar percorrer.

Nesse dia voltei da escola como se tivesse a tampa da cabeça aberta e os pensamentos me fugissem para o vento (...).

Percebi que para dentro de nós há um longo caminho e muita distância. Não somos nada feitos do mais imediato que se vê à superfície. Somos feitos daquilo que chega à alma e a alma tem um tamanho muito diferente do corpo.

Percebi que ver verdadeiramente uma pessoa obriga a um esforço como o de estarmos sentados nos nossos bancos a tomar conta do que passa pelos montes. Percebi que ver verdadeiramente uma pessoa também é como prevenir os fogos, como fazia o meu pai que, afinal, era guarda-florestal.

O rosto é mais turvo do que os céus e pode ser muito mais complexo do que saber exactamente de quem é um rebanho e se cresceu ou diminuiu. O rosto começa onde se vê e vai até onde já não há luz nem som. Por isso, por mais que observemos, ainda muita coisa nos há-de-escapar e o importante é que estejamos tão atentos quanto possível para nos conhecermos uns aos outros.

Conheci melhor o meu pai. Conheci melhor a minha mãe. Até conheci melhor o nosso cão, que era mesmo maluco, porque lho via no rosto e tudo. Entendi que o rosto é extenso e infinito, capaz de expressões que vamos conhecendo e outras que nunca vemos. Toda a vida precisamos de estar atentos, se assim não fizermos vamos perder muito do mais importante que acontece em nosso redor. Como se houvesse um incêndio mesmo diante de nós e nem sequer o percebêssemos antes que restem todas as coisas completamente queimadas" - (pp. 55-56).


(Contos de cães e maus lobos. Valter Hugo Mãe. Rio de Janeiro: Biblioteca azul, 2018).

quarta-feira, 26 de agosto de 2020

O fascismo eterno - Umberto Eco

 

"1. A primeira característica de um Ur-Fascismo é o culto da tradição. O tradicionalismo é mais velho que o fascismo (...).

2. O tradicionalismo implica a recusa da modernidade (...)

3. O irracionalismo depende também do culto da ação pela ação. A ação é bela em si e, portanto, deve ser realizada antes de e sem nenhuma reflexão (...)

4. Nenhuma forma de sincretismo pode aceitar críticas. O espírito crítico opera distinções, e distinguir é um sinal de modernidade. Na cultura moderna, a comunidade científica percebe o desacordo como instrumento de avanço dos conhecimentos. Para o Ur-Fascismo, o desacordo é traição.

5. O desacordo é, além disso, um sinal de diversidade. O Ur-Fascismo cresce e busca o consenso utilizando e exacerbando o natural medo da diferença. O primeiro apelo de um movimento fascista ou que está se ornando fascista é contra os intrusos. O Ur-Fascismo é, portanto, racista por definição (...)

6. O Ur-Fascismo provém da frustração individual ou social. Isso explica por que uma das características típicas dos fascismos históricos tem sido o apelo às classes médias frustradas, desvalorizadas por alguma crise econômica ou humilhação política, assustadas pela pressão dos grupos sociais subalternos (...).

7. Para os que se veem privados de qualquer identidade social, o Ur-Fascismo diz que seu único privilégio é o mais comum de todos: ter nascido em um mesmo país. Esta é a origem do "nacionalismo". Além disso, os únicos que podem fornecer uma identidade às nações são os inimigos. Assim, na raiz da psicologia Ur-Fascista está a obsessão da conspiração, possivelmente internacional. Os seguidores têm que se sentir sitiados. O modo mais fácil fazer emergir uma conspiração é fazer apelo à xenofobia. Mas a conspiração tem que vir também do interior: os judeus são, em geral, o melhor objetivo porque oferecem a vantagem de estar, ao mesmo tempo, dentro e fora (...)

8. Os adeptos devem sentir-se humilhados pela riqueza ostensiva e pela força do inimigo (...)

9. Para o Ur-Fascismo, não há luta pela vida, mas antes "vida para a luta". Logo, o pacifismo é conluio com o inimigo; o pacifismo é mau porque a vida é uma guerra permanente (p.44-52).

(In. Umberto Eco. O Fascismo eterno. Rio de Janeiro: Record, 2020).

terça-feira, 25 de agosto de 2020

Seu paciente favorito - Violaine de Montclos

 

"Dois Homenzinhos de Papel Machê - Sylviane Giampino & Gretel".

"Gretel agendou uma consulta para uma menina de nove anos. Sylviane Giampino imaginou, portanto, ver chegar uma mãe com sua filha, mas é uma mulher de 63 anos que se apresenta, sozinha, à porta de seu consultório. O encontro delas começa com um mal-entendido.
Gretel explica com um forte sotaque que deseja falar de Violette, sua neta, que passa por um sofrimento incompreensível. Faz pouco tempo, a criança não consegue mais andar. Ela começou, há alguns meses, a sentir dores difusas, depois começou a mancar, a pular em uma perna só, e, desde então, Violette não consegue mais se manter de pé. É impossível, de tanta dor que sente, colocar um pé no chão. Evidentemente, foram feitos todos os exames de prache, pensou-se em uma doença degenerativa,  foi descartado o fantasma de uma questão neurológica. Violette, fisiologicamente, não tem nada. Acabou de dar entrada, para uma breve estadia, no serviço psiquiátrico de um grande hospital parisiense.
Gretel mantém uma relação difícil com a própria filha, mãe da criança. Sua filha e o esposo a mantêm violentamente afastada desse acontecimento. O casal insinua que ela é indesejável ao lado da neta, que, no fundo, sua presença é nociva, como se quisessem proteger a criança de algum misterioso perigo do qual ela seria a portadora. A velha senhora conseguiu, ainda assim, visitar Violette, e conversou com sua psiquiatra, que fala da situação da criança, que evoca os casos espetaculares de histeria outrora examinados por Charcot e que elucida que o caso, ao que tudo indica, é raríssimo. Gretel, muito angustiada, vem encontrar Sylviane Giampino na esperança de entender o que acontece com sua neta: ela é psicanalista, lida frequentemente com crianças, poderia ajudá-la a elucidar esta situação?
Eis a pergunta feita na ocasião desse encontro frente a frente, e que, portanto, não caracteriza uma demanda de análise. Sylviane Giampino tenta, no entanto, procurar saber mais sobre a tensão que existe com a mãe de Violette, e a velha senhora, então, descreve sua filha mais velha como uma mulher extremamente brilhante, uma quimica renomada, um pouco fria, muito organizada, a quem ama, mas ao mesmo tempo, teme. Ela usa, ao descrevê-la, esta expressão desconcertante: "Ela é de raça pura". Ela fala também, em um mesmo impulso, de sua mãe...Gretel nasceu durante a guerra, contaram-lhe que sua mãe havia fugido com ela, ainda bebê, e que ficaram escondidas, as duas, por alguns meses, no final do conflito. É isso. Desde o primeiro encontro, quatro gerações de mulheres são, então, convocadas para o consultório de Sylviane Giampino, entre as quais, a menina que não consegue mais andar. Diante de mim, muito tempo depois dessa visita inaugural, a psicanalista mergulha no pequeno dossiê que manteve durante o tratamento de Gretel e que contém nomes, datas, alguns detalhes significativos. Mas a consulta a esse dossiê é supérflua, já que Sylviane Giampino não esqueceu nada da surpreendente história que virá adiante.
(...) Gretel está frequentemente melancólica, oprimida pelo sofrimento de Violette e pela frieza demonstrada pela própria filha. Fala muito de seu pai, grande médico, figura muito admirada, que Gretel, assim como seus irmãos, amou muito. Prisioneiro em um campo russo, retornou ao lar apenas cinco anos após o fim da guerra; a velha senhora se recorda muito bem dos reencontros felizes. Ela fala de seu esposo, da maneira como educaram seus três filhos, uma menina e dois meninos, da profissão que exerceu, e, agora, de sua aposentadoria. Ela evoca também a mania que tem, desde sempre, de guardar papeis velhos. Todos os papéis. Calendários, boletins escolares, receitas médicas, faturas, desenhos, cartões-postais, cartas, documentos administrativos de todo tipo. Ela diz que faz camadas, pilhas que invadem o escritório, a sala, o sótão. Seu marido fica irritado com isso, não sabe mais onde colocá-los, seria necessário desfazer-se deles, que se pensava ser inútil, algum dia se revelasse indispensável? Ela se justifica, citando misteriosamente uma frase que atribui a Goethe: "O papel é paciente".
Semanas, meses, perto de dois anos se passaram e Gretel, desde então, adquiriu o hábito de ir falar com sua psicanalista toda semana. Ela se apresenta vestida de maneira muito simples, mas sua aparência e graça natural impressionam Sylviane Giampino (...). Gretel fala também de sua nova paixão. Desde que inicia as visitas a Sylviane Giampino, aprende a confeccionar, com um enorme prazer, esculturas em papel machê.
(...)
Então, uma cena surpreendente lhe retorna brutalmente. Teria sonhado, imaginado, assistido? Gretel vê seu pai vasculhar a casa da família, revirar cada um dos cômodos como um louco, esvaziar as gavetas, correr de um andar a outro; efetivamente, tinha perdido um papel de importância crucial...Ela quer saber mais sobre isso, vai e volta da Alemanha várias vezes, onde sua mãe muito idosa ainda reside, tenta entender de onde vem essa lembrança, mas não obtém resposta e mergulha então em profunda desolação. "Não tenho mais forças", ela diz à sua psicanalista. Apenas na quarta viagem é que a mãe reconhece, enfim, que houve, algum dia, um papel perdido.
Ao final dos anos 1940, em plena desnazificação, o documento atestava que o pai de Gretel não era um nazista, e ele o perdeu. Ele nunca mais achou esse papel de tão extrema importância? Não. E ela, sua mãe, nunca pôde ver o papel com os próprios olhos? Também não.
A partir de então, contra a opinião de sua mãe e de seus irmãos e irmãs, mas encorajada por seu esposo, Gretel dá início a pesquisas, percorre associações e as bibliotecas, consulta documentos históricos. E descobre, enfim, o verdadeiro objeto de sua vergonha. Seu pai, o homem que ela tanto amou, o médico tão admirado, essa figura tão importante de sua existência, era um nazista. Teria até mesmo participado de experimentos médicos, trabalhando como ginecologista, para a ascensão de uma suposta "raça pura". Nem a mãe de Gretel, nem seus primos, nem nenhum de seus irmãos, com exceção de um, querem saber disso. Eles a ridicularizam, a criticam por vasculhar inutilmente o passado, e Sylviane Giampino fala hoje da imensa admiração que tem pela tenacidade de sua paciente. Descobrir-se, em tal idade, herdeira de história tão vergonhosa e manter-se firme, apesar de tudo. Gretel lhe dirá um dia, em sessão: "Se é necessário que eu derrube a estátua de meu pai para que Violette ande, então como poderia desistir?".
Pois é exatamente disso que se trata. Violette, que, no entanto, nada sabe do trabalho que sua avó realizou sobre ela mesma e sobre seu passado, Violette, a quem Gretel evita revelar seu segredo, Violette iniciará o sétimo ano em pé, logo após essa terrível descoberta...E é isso que Gretel, feliz, anuncia, enfim, à sua psicanalista, certa de ter libertado sua neta. 
(...)
E Sylviane Giampino jamais se esquecerá o sorriso de Gretel em sua última sessão. No cafarnaum de objetos alegres que enfeitam sua sala de espera, existe, em cima de uma prateleira, o presente que sua paciente lhe ofereceu, ao dizer adeus: dois homenzinhos em papel machê" - (pp. 85-90).

(In. Seu paciente favorito - 17 histórias extraordinárias de psicanalistas. São Paulo: Perspectiva, 2020).

Mais sobre o livro:
 

O que ela sussurra - Noemi Jaffe (trecho)

"O passado é um cobertor rosa que não serve para cobrir nossos corpos. Sempre falta ou sobra uma parte e as memórias se contorcem, são como galhos semimortos presos a raízes parasitas, você e eu. O tempo ultrapassa nossos corpos, mas precisa se agarrar a eles, tomar seu tamanho e hoje meu tempo cabe exatamente em mim, o passado fui eu que inventei. Por que, na alvorada da nova era, no começo mesmo do século XX, eu recebi o nome de Nadejda? Foi esperança que eles quiseram me nomear, para que eu ficasse condenada ao futuro, projetando-me para a frente, quando meu corpo só me puxava para trás. Sou o passado lançado para um futuro, cujo único conteúdo conhecido é continuar a sussurrar teus poemas" - (p.16).
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"É preciso manter alguma irracionalidade, alguma infantilidade quando você está sendo perseguido sem explicação. Não é possível ficar pensando estrategicamente ou manter a seriedade ou o desespero o tempo todo. Tínhamos formas de acreditar que a normalidade era possível e, entre eles dois, espirituosos e sardônicos, o humor fazia o papel de sanidade e até de sobrevivência. Se não mantivessem o riso diante do absurdo, cederiam a ele e perderiam a pouca força que tinham. Óssip cardíaco e Anna viúva com o filho preso" - (p.42).




"Já compreendi que a realidade das coisas é que se molda conforme o desejo, o gosto e a conveniência do intérprete e não o inverso e, nesse caso, tudo é possível, até acreditar na poesia de Óssip, de Pasternak, de Akhmátova e no partido ao mesmo tempo" - (p. 51).

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"Não esperar nada é o que de melhor alguém pode fazer contra qualquer tipo de opressão e só assim fui capaz de sobreviver a tudo" - (p.57).

"Passei mais de vinte anos sussurrando; uma dedicação comparável à de quando ele ainda era vivo, talvez maior, e comparável à de quando ele ainda era vivo, talvez maior, e agora eu entendo que não foi só para proteger os poemas do esquecimento. Foi também para continuar perto dele e ele perto de mim, para que um amor que sempre foi físico e erótico - a noite todas as nossas discordâncias se dissolviam - tivesse uma continuidade também concreta, pela voz e pelo som. Todo poema que falo me faz sentir mais redonda, as sílabas se reunindo na boca, passando pela língua me fazem subitamente bonita, as palavras sendo sopradas pelos círculos de fumaça, que assopro a cada tragada, me transformam rápido numa coquete. É patético, mas ainda tenho uma intimidade, eu que me dediquei a apagá-la" - (p.80).

(In. O que ela sussurra. São Paulo: Companhia das Letras, 2020).

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Para saber mais sobre o livro:



quinta-feira, 30 de julho de 2020

Caderno de memórias coloniais - Isabela Figueiredo (trechos)

"As incursões sexuais pelo caniço não assombravam o seu futuro, porque uma negra não reclamava paternidade. Ninguém lhe daria crédito.
Mas um branco podia, se quisesse, casar com uma negra. Esta ascenderia socialmente, e passar a a ser aceite, com reservas, mas aceite, porque era mulher do Simões, e por respeito ao Simões... Era frequente no caso dos cantineiros e machambeiros afastados da cidade, homens relativamente à parte na sociedade colonial decente, que mais cedo ou mais tarde se cafrealizavam.
Para uma branca, assumir união com um negro, implicava proscrição social. Um homem negro, por muito civilizado que fosse, nunca seria suficientemente civilizado" - (p. 35).
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"Uma branca não admitia que gostasse de foder, mesmo que gostasse. E não admitir era uma garantia de seriedade para o marido, para a imaculada sociedade toda. As negras fodiam, essas sim, com todos e mais alguns, com os negros e os maridos das brancas, por gorjeta, certamente, por comida ou por medo. E algumas talvez gostassem, e guinchassem, porque as negras eram animais e podiam guinchar. Mas, sobretudo, porque as negras autorizavam-se a si próprias a guinchar, e abrir as pernas, a ser largas. Uma branca cumpria a obrigação" - (p. 40).
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"O negro estava abaixo de tudo. Não tinha direitos. Teria os da caridade, e se a merecesse. Se fosse humilde. Se sorrisse, falasse baixo, com a coluna vertebral ligeiramente inclinada para a frente e as mãos fechadas uma na outra, como se rezasse.
Esta era a ordem natural e inquestionável das relações: preto servia o branco, e branco mandava no preto. Para mandar, já lá estava o meu pai; chegava de brancos!" - (p.43).
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"O prazer de ler um livro amortecia humilhações, e era muito maior do que o de brincar sozinha com os bichos ou imaginando guerras com as roseiras do jardim. Um livro trazia um mundo diferente dentro do qual eu podia entrar. Um livro era uma terra justa. Entre o mundo dos livros e a realidade ia uma colossal distância. Os livros podiam conter sordidez, malevolência, miséria extrema, mas, a um certo ponto, havia neles uma redenção qualquer. Alguém se revoltava, lutava e morria, ou salvava-se. Os livros mostravam-me que na terra onde vivia não existia redenção nenhuma. Que aquele paraíso de interminável pôr-do-sol salmão e odor a caril e terra vermelha era um enorme campo de concentração de negros sem identidade, sem a prosperidade do seu corpo, logo, sem existência. Nada nos meus livros, que recorde, estava escrito desta exata forma, mas foi o que li" - (p. 46).
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" A partir de certa idade, muito cedo na infância, já somos nós, o que há de perseguir-nos sempre" - (p. 127).
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"Todos os lados possuem uma verdade indesmentível. Nada a fazer. Presos na sua certeza absoluta, nenhum admitirá a mentira que edificou para caminhar sem culpa, para conseguir dormir, acordar, comer, trabalhar. Para continuar. Há inocentes-inocentes e inocentes-culpados. Há tantas vítimas entre os inocentes-inocentes como entre os inocentes-culpados.  Há vítimas-vítimas e vítimas culpadas. Entre as vítimas há carrascos.
Passa muito tempo até termos a voz, até termos saldado, a bem ou a mal, a dívida que pensávamos dever; até cuspirmos no dever e na honra e na fidelidade, essas cordas tão sujas, tão forçadas. Até não nos importarmos de ser apenas umas cabras, párias de sangue e de raça. Até perder a fé e a cortesia. Tudo." - (p. 136).
(In. Caderno de memórias coloniais. São Paulo: Todavia, 2018).
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Mais sobre o livro:
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Sobre Isabela Figueiredo: