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sábado, 15 de fevereiro de 2025

A avestruz - Jacques Prévert

 


"Enquanto o Pequeno Polegar, abandonado na floresta, semeava pedrinhas para depois poder achar o caminho de volta, nem desconfiava que estava sendo seguido por uma avestruz que devorava suas pedrinhas, uma por uma.
Eis aqui a verdadeira história, foi assim que aconteceu...
O jovem Polegar se virou: cadê as pedrinhas?!
Ele estava definitivamente perdido sem pedrinhas, sem volta; sem volta, sem casa; sem casa, sem pai, nem mãe.
"E agora?", murmurou para si mesmo, entredentes.
 De repente, ouviu gargalhadas, e depois o som de sinos, e um barulho de água, trombetas, uma orquestra inteira, zanguizarra de zoeira, uma música brutal, estranha, mas um pouco desagradável, e totalmente nova para ele. Colocou então a cabeça por entre os arbustos e viu uma avestruz dançando; ela olhou para ele, parou de dançar e disse:
A Avestruz: "Sou eu que estou fazendo esse barulho todo, estou tão feliz, meu estômago é magnífico, posso comer qualquer coisa. Hoje de manhã, comi dois sinos com os badalos, duas trombetas, três dúzias de xicrinhas, uma salada com a saladeira, e também comi as pedrinhas brancas que você foi largando. Monta no meu lombo, sou bem veloz, vamos viajar juntos".
"Mas", disse o jovem Polegar, "não vou mais ver o meu pai e a minha mãe?..."
A Avestruz: "Se eles te abandonaram, quer dizer que eles não querem te ver tão cedo."
O Pequeno Polegar: "Com certeza tem verdade no que a senhora está dizendo, senhora Avestruz".
A Avestruz: "Não me chame de senhora, tenha pena das minhas penas! Pode me chamar só de Avestruz."
O Pequeno Polegar: "Tudo bem, Avestruz, mas mesmo assim, tem a minha mãe, não é?
A Avestruz (irritada): "Não é o quê? Você já está me irritando, e além do mais, se você quer saber, u não morro de amores pela sua mãe, principalmente por causa daquela mania que ela tem de sempre usar chapéu com penas de avestruz...".
Polegar filho: "É que as penas custam caro... e ela gasta um dinheirão só para impressionar os vizinhos".
A Avestruz: "Em vez de impressionar os vizinhos, ela faria melhor se cuidasse de você. Ela até te dava uns tapas de vez em quando".
Polegar filho: "Meu pai também me batia".
A Avestruz: "Ah, o senhor Polegar batia em você? É inadmissível. Se os filhos não batem nos pais, por que os pais batem nos filhos? 
Aliás, o senhor Polegar nem e tão esperto assim, não. Sabe o que ele disse quando viu um ovo de avestruz pela primeira vez?
Polegar filho: "Não".
A Avestruz: "Bem, ele disse: 'Daria uma linda omelete!' ".
Polegar filho (lembrando): "Lembro da primeira vez que ele viu o mar. Ele pensou um pouco e disse: ' Que piscinão, pena que não tenha nenhum trampolim'.
Todo mundo riu, mas eu fiquei com vontade de chorar, e então a minha mãe me deu um puxão de orelha e disse: 'Você não pode rir que nem todo mundo quando o seu pai faz uma piada?!' Não é culpa minha, mas eu não gosto das piadas das pessoas grandes..."
A Avestruz: "...Eu também não. Monta no seu lombo, você não vai rever os seus pais, mas vai ver todo o pais."
"Está bem", disse o Pequeno Polegar, e montou.
Num forte galope triplo, a ave e a criança partiram, deixando uma nuvenzona de poeira.
Da soleira da porta, os camponeses balançam a cabeça e dizem: "Mais um daqueles automóveis imundos!".
Mas as camponesas ouvem a avestruz repicar os sinos no galope.
"Estão ouvindo esses sinos?", disseram elas, se benzendo: "Igreja fugindo, o Diabo vem vindo".
E todos se trancam até a manhã seguinte, mas na manhã seguinte e o menino já estão bem longe.


(In. Contos para crianças impossíveis. São Paulo: Cosac Naify, 2007. pp.6-11).

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025

Minhas férias com Franz Kafka - (fragmentos)

 

"Nossa sentença não parece severa. O mandamento que o condenado infringiu está inscrito em seu corpo com o rastelo. Por exemplo, para este condenado - o oficial apontou para o homem - será escrito no corpo: "Honre seus superiores!" (...). O viajante queria perguntar algo diferente mas apenas questionou, ao olhar o homem:

- Ele sabe qual é a sentença?

- Não - respondeu o oficial. E quis, de pronto, continuar suas explicações, mas o viajante o interrompeu:

- Ele não sabe qual é a própria sentença?

- Não - repetiu o oficial. Parou por um momento, como se exigisse um fundamento mais específico da pergunta do viajante, e, então, e, então, disse: - Seria inútil anunciá-la. Ele a sentirá na carne. 

O viajante quis se calar, mas sentiu que o condenado voltava o olhar para ele, parecendo perguntar se ele endossava o processo descrito. Por isso, o viajante se curvou para a frente de novo, pois já havia recuado, e voltou a perguntar:

- Mas ao menos ele soube que foi condenado?

- Também não - disse o oficial. Ele sorriu para o viajante, como se esperasse dele mais alguma observação peculiar.

- Não - repetiu o viajante, passando passando a mão pela testa -, então o homem tampouco sabe como sua defesa foi feita?

- Ele não teve a oportunidade de se defender - comentou o oficial e olhou para o lado, como se falasse para si mesmo e não quisesse envergonhar o outro por ter que explicar coisas tão óbvias".

(In. Na colônia penal. Rio de Janeiro: Antofágica, 2020, pp. 35-39).

***

"... sou o que sou como resultado da sua educação e da minha obediência (além dos fundamentos e da influência da vida, é claro). O fato de você ainda se atormentar com esse resultado, sim, de se recusar inconscientemente a reconhecê-lo como resultado de sua educação, é precisamente porque sua mão e meu material eram tão estranhos um ao outro".

(In. Carta ao pai. Rio de Janeiro: Antofágica, 2024, p.45).

***

"Gregor não poderia ser demitido de imediato. E para Gregor parecia ser muito mais razoável que o deixassem em paz no momento em vez de perturbá-lo com choros e tentativas de persuasão. Mas era exatamente a incerteza que afligia os outros que justificava o modo como se comportavam".

(In. A metamorfose. Rio de Janeiro: Antofágica, 2019, p. 55).

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2025

A última névoa - Maria Luisa Bombal (trecho)

 

"Uma vez nua, permaneço sentada à beira da cama. Ele se afasta e me contempla. Sob seu olhar atento, jogo a cabeça para trás e esse gesto me enche de um íntimo bem-estar. Junto os braços atrás da nuca,, tranço e destranço as pernas e cada movimento traz consigo um prazer intenso e completo como se, por fim, meus braços, meu colo, minhas pernas encontrassem uma razão de ser. Ainda que este prazer fosse a única finalidade do amor, me sentiria já bem recompensada!

Aproxima-se; minha cabeça fica à altura de seu peito, que ele me oferece sorridente, aperto contra ele meus lábios e logo encosto a testa, o rosto. Sua carne cheira a fruta, a vegetal. Num novo impulso, jogo os braços ao redor de seu torso e atraio, mais uma vez, seu peito contra a minha ace.

Abraço-o com força e ouço com todos os meus sentidos. Ouço nascer, voar e recair sua respiração; escuto a explosão que seu coração repete incansável no centro do peito e que repercute nas estranhas e se espalha em ondas pelo corpo todo, transformando cada célula num eco sonoro. Aperto-o, aperto sempre com maior afã; sinto correr o sangue em suas veias e sinto trepidar a força que se esconde inativa em seus músculos; sinto agitar-se a borbulha de um suspiro. Entre meus braços, toda uma vida física, com sua fragilidade e mistério, fervilha e se precipita. Começo a tremer.

Então ele se debruça sobre mim e rolamos enlaçados para o centro da cama. Seu corpo me cobre como uma grande onda fervente, me acaricia, me queima, me penetra, me envolve, me arrasta desfalecida. à minha garganta sobe algo assim como um soluço, e não sei por que começo a me queixar, não sei por que é doce me queixar, é doce para o meu corpo o cansaço infligido pela preciosa carga que pesa sobre minhas coxas.

Quando acordo, meu amante dorme estendido ao meu lado. A expressão de seu rosto é plácida; seu hálito é tão leve que preciso me inclinar sobre os lábios dele para senti-lo. Percebo que, presa a uma finíssima e quase imperceptível corrente, uma medalhinha se aninha na penugem castanha do peito; uma medalhinha trivial, dessas que as crianças recebem no dia da primeira comunhão. Minha carne toda se enternece diante desse detalhe pueril. Aliso uma mecha rebelde colada à sua têmpora, ergo-me sem acordá-lo. Visto-me com cuidado e vou-me embora. Saio como cheguei, tateando.

Já estou aqui fora. Abro a grade. As arvores estão imóveis e ainda não amanheceu. Subo correndo a ruela, atravesso a praça, retomo avenidas. Um perfume muito suave acompanha-me: o perfume do meu enigmático amigo. Fiquei toda impregnada do seu aroma. E é como se ele ainda caminhasse ao meu lado ou ainda me tivesse apertada em seu abraço ou tivesse desfeito sua vida em meu sangue para sempre (p. 29-31).

Não importa que meu corpo fique murcho, se conheceu o amor! Que importa que os anos passem odos iguais? Tive uma bela aventura uma vez...Com uma única lembrança se pode suportar uma longa vida de tédio. E até repetir, dia após dia, sem cansaço, os mesquinhos gestos cotidianos (p. 33).

Não veio ninguém, nada aconteceu. A amargura da decepção não dura mais do que o lapso de um segundo. Meu amor por "ele" é tão grande que está acima da dor da ausência. Basta-me saber que existe, que sente e se lembra em algum canto deste mundo... - (p. 34).

E se chegasse a esquecer, como faria então para viver? 

Bem sei agora que os seres, as coisas, os dias não são suportáveis para mim, a não ser quando vistos através do estado de vida que minha paixão cria. 

Meu amante é para mim mais do que um amor; é minha razão de ser, meu passado, meu agora, meu amanhã" - (p. 54).

(In. A última névoa & A amortalhada. São Paulo: Cosac Naify, 2013). 



sexta-feira, 26 de janeiro de 2024

Sobre poesia e Filosofia - um depoimento - Orides Fontela

 


 “Alta agonia é ser, difícil prova” é o primeiro verso de um soneto meu, escrito aos 23 anos — um soneto muito importante para mim, pois é uma espécie de programa de vida, que não renego nunca e nem jamais conseguirei cumprir, porém é minha tarefa tentar. Difícil prova, sim, impossível, pois isso constitui propriamente o humano. E, claro, todas as ferramentas servem, principalmente, à religião (sobre o aspecto místico), à poesia — intuições básicas e... musicais, que tive de nascença — e, a bem mais recente, à filosofia. Deixando a religião de lado (mas fica lá, por baixo), falemos só de poesia e filosofia. 

 Arcaica como o verbo é a poesia, velha como o cântico. A poesia, como o mito, também pensa e interpreta o ser, só que não é pensamento puro, lúcido. Acolhe o irracional, o sonho, inventa e inaugura os campos do real, canta. Pode ser lúcida, se pode pensar — é um logos — mas não se restringe a isso. Não importa: poesia não é loucura nem ficção, mas sim um instrumento altamente válido para apreender o real — ou pelo menos meu ideal de poesia é isso. Depois é que surgem o esforço para a objetividade e a lucidez, a filosofia. Fruto da maturidade humana, emerge lentamente da poesia e do mito, e inda guarda as marcas de co-nascença, as pegadas vitais da intuição poética. Pois ninguém chegou a ser cem por cento lúcido e objetivo, nunca. Seria inumano, seria loucura e esterilidade. Bem, aí já temos uma diferença básica entre poesia e filosofia — a idade, a técnica, não o escopo. Pois a finalidade de entender o real é sempre a mesma, é “alta agonia” e “difícil prova” que devemos tentar para realizar nossa humanidade. Isso é o que temos a dizer, inicialmente, sobre a filosofia e poesia. 

 Bem, fazer poesia fiz sempre, e curiosa sempre fui. “Que bicho é esse?” era minha pergunta de aluninha. “Ti esti”, “que é”, pergunta o filósofo. É pergunta igual... Aos dezesseis anos fiz os seguintes versos: 

Pensar dói 

e não adianta nada.  

Maus versos, mas intuição válida. Pensar dói mesmo, faz cócegas, pode ser tão irreprimível como a curiosidade da aluninha. E de que adianta? Bem, o caso é que eu não engolia, nem engulo, respostas já prontas, quero ir lá eu mesma, tentar. Tentava pela poesia. Ora, uma intuição básica de minha poesia é o “estar aqui” — autodescoberta e descoberta de tudo, problematizando tudo ao mesmo tempo. Só que este “estar aqui” é, também, estar “a um passo” — de meu espírito, do pássaro, de Deus — e este um passo é o “impossível” com que luto. É o paradoxo que exprimo num poemeto. 

Próxima: mas ainda 

estrela 

muito mais estrela 

que próxima.

 Ora, esta posição existencial básica de meus poemas já é filosófica, isto é, seria possível desenvolvê-la em filosofia, e daí veio meu interesse pela filosofia propriamente dita. Eu vivia a intuição quase inefável de estar só “a um passo”, que bastava erguer um só véu. Mocidade! E aí entra na minha vida a filosofia explícita. Entrou em aulas da Escola Normal, entrou pelos livros que procurei conseguir (Pascal, Gilson, Maritain, e até alguns não tão ortodoxos), e misturou-se a um interesse pela mística — Huxley, Sta. Tereza, São João da Cruz. Salada de que resultou meu livro “Transposição”, muito “abstrato” e “pensado” — no sentido poético de tais termos. Girava em torno do problema do ser e da lucidez, e abusava do termo “luz”. Um livro estranho, que só recentemente percebi como estava na contramão da poesia brasileira, sensual e sentimental. Parecia até meio cabralino devido a um vezo analítico, mas nunca foi, claro. Era um livro escrito no interior, tramado pelas tendências já levantadas, e onde já poesia e filosofia tentavam se irmanar, como possível. 

 Não preciso explicar, agora, porque meu interesse por filosofia era quase inato, como a poesia. Assim, agarrei a oportunidade de fazer realmente filosofia. Talvez desse em algo prático (não deu), mas o que me interessava era, acreditem ou não, a Verdade. Ingenuidade? Hoje sei que era, mas era a própria ingenuidade nobre sem a qual não se cria. E lá parti eu para tentar a filosofia, continuando com a poesia naturalmente. E o curioso é que estas águas não se mesclaram mais do que já estavam, senão a poesia poderia se tornar seca e não espontânea. Mas dei sorte (!) de não me tornar filósofa... Aliás, o mais que conseguiria seria ser uma professora de filosofia, isto é, uma técnica no assunto — e, bom, não era essa a finalidade. Nem dava; faltava base econômica e cultural. Pobre e vindo apenas do Normal só consegui terminar o curso. Mas me diverti muito. 

 Não, concluí, a filosofia propriamente dita não é exatamente meu caminho, aliás nem mesmo me considero intelectual, só poeta, e ponto. Melhor criar que comentar, claro. A filosofia não me deu a resposta, a poesia só dá intuições, a estrela próxima está cada vez mais longe, mas continue-se a escrever... 

 Se fiquei insatisfeita com a filosofia explícita, isso não significa que foi inútil. Deu uma base cultural que eu não tinha, alargou meu mundo. E me deu o “status” de “filósofa”, universitária. É mais ou menos mito, mas mitos são excelentes para promover livros. 

 A poesia foi indo, como deu. Preocupou-se com a forma, a técnica — Helianto, do tempo da faculdade — e chegou à meta-poesia — Alba. Depois tentei voltar, tornar o papo mais concreto — Rosácea, Teia. Mais próxima do cotidiano, mais sofrida, é como ela está, e eu também. Consequências da pobreza, do envelhecimento, das mágoas. Lamento ter perdido a passada ingenuidade (e imunidade) mas não que mudei de pele, não é possível. O futuro é propriamente falando o imprevisível — e não sei onde a pesquisa poética e o pensamento selvagem me levarão. E inda acrescentei à minha salada o zen-budismo — com bons resultados, aliás — e agora procuro outros “ingredientes”, se possível. Não estar satisfeita é bem humano. 

O soneto a que me referi no princípio fala em 

despir os sortilégios, brumas, mitos. 

e taí uma tarefa bem filosófica, se a filosofia fosse só consciência crítica e lucidez, se não alimentasse também brumas e mitos próprios. Sem o que estaríamos tão nus que morreríamos, ou quem sabe — transmutávamo-nos —. Persigo a 

aguda trama 

da meta 

morfose,

e, para isso, poesia, filosofia, zen e o mais que vier, tudo serve — ruma ao não-dito, ao nunca dito, ao inexprimível. 

 Noutro poema, digo 

Amor 

cegueira exata. 

e, entendendo-se “amor” como a energia criativa primordial, então o saber poético se dá como uma “cegueira exata”: intuição, pensamento selvagem. A poesia, claro, não apresenta provas: isto é tarefa para a filosofia. Mas os filósofos — os criativos mesmo — também partem de intuições, e é a poesia que dá o que pensar. Que dizer dos incitantes fragmentos de Heráclito? Mistério religioso? Filosofia? Poesia? Tudo junto! E de Platão, aliás também poeta? E de Heidegger — que confesso ter lido como poesia — que, afinal, acaba no poético, por tentar algo indizível? Há muita poesia na filosofia, sim. Não poesia didática — como a dos pré-socráticos — mas poesia como fonte que incita e embriaga. E da filosofia na poesia já falamos, só que é “filosofia” que se ignora, que canta — que dá nervo aos poemas e tenta entrar onde o raciocínio não chega. 

 Filósofos podem servir de exemplo aos poeta, como digo 

Sócrates 

fiel ao seu daimon. 

pois, como os poetas, Sócrates era inspirado — e era fiel a sua inspiração. Só isso cabe ao poeta: ser fiel à voz interior, sem forçar, sem filosofar explicitamente. Deixar que, naturalmente, filosofia e poesia se interpenetrem, convivam, colaborem. 

 Nasceram juntas, sob a forma de mito, e juntas sempre, sempre colaboram para criar e renovar a nossa própria humanidade".


(In. Poesia (e) Filosofia. Por poetas-filósofos em atuação no Brasil. Pucheu, Alberto (org). Belo Horizonte: Moinhos, 2019 , p. 11- 14).

terça-feira, 17 de outubro de 2023

Jennifer Zambra - por Alejandro Zambra

 


"Si hubiera nascido mujer, me habrian llamado Jennifer Zambra. Estaba decidido. Fue casi lo primero que le conté a tu madre, coqueteando en un diner de Prospect Heights. En realidad partimos hablando de árboles y migrañas. Y lamentamos la muerte de Oliver Saks como si tratara de un familiar o de un amigo en común.
Como capitanes en el centro de la cancha, o como embajadores tímidos de países exóticos, intercambiamos libros de Emmanuel Bove y de Tamara Kamenszain. Durnte los primeros minutos no era fácil combatir los nervios, asó que leímos apasionadamente los menús, parecí que buscábamos erratas. Y luego pelamos confusos amoríos ajenos que quizás eran propios.
Hasta que por fin nos iramos a los ojos sin demasiadas precauciones. Fue un ruidoso minuto entero e antiguo silencio heterosexual. Arreciaron las confesiones súbitas y la placentera enumeración de filias y fobias. Y esas frases ambiguas que suenan a promesas.
No sé cómo se me ocurrió preguntarle a tu madre su nombre masculino alternativo. Había algún contexto, pro no lo recuerdo. Fue una mala jugada, ahora que lo pienso, tal vez la peor. Por suerte a tu madre la pregunta no le pareció tan rara. Recuerdo que se arregló innecesariamente el pelo, como para dibujarse la sonrisa a la pasada.
- Tú primero - me dijo sabiamente.
Asi que me vi de pronto hablando de Jennifer Zambra. En algún omento de la infancia avivé el resentimiento pensando en ese nombre extranjero, inspirado por quién sabe cuál atriz. Mis padres lo eligieron para mí sin calcular que me habría condenado a toda clase de burlas.
Pero me fui encariñando con la escena de mis padres en un departamento de Villa Portales, de pronto seducidos por el soberbio tintineo de ese nombre fantástico. Acaso mi hermana, entonces de dos años, alcanzó a pronunciar el nombre de su posible sucesora.
Los apellidos son prosa, los nombres poesia. Hay quienes se pasan la vida leyendo la novela irremediable del apellido. Pero en el nombre laten caprichos, intenciones, prejuicios, contingencias, emociones. Y suele ser la única obra que la madre y el padre escriben juntos.
De manera que para un eventual hijo varón mis padres escribieron un poema convencional, que no brillaria ni desluciría en ninguna antología, y para su posible hija mujer otro más atrevido, rupturista y polémico. Un nombre que jugaba con los limítes.
Ya en la adolescencia solía pensar en la difícil o solitária o ecandalosa vida de Jennifer Zambra. Y hasta soñaba con ella. La veía jugando frontón en el patio de un liceo vacio. O aburrida como ostra en la Misa de Gallo. O trenando triunfalmente su espetacular cabellera zabache después de arrancar de todo el mundo.
Pasaba horas decidiendo con cuáles de mis amigos Jennifer Zambra se acostaría y a cuáles preferiría como amigos nomás. Y hasta traté de enamoraram doblemente - en la no y en la si ficción - de un compañero de curso. Y tal vez lo logré.
Pero también era habitual que me olvidara de ella. O que fingiera que la olvidaba. O que derechamente la negara. Y hasta hubo ocasiones en que me burlé d Jennifer Zambra. Delante de todos y de todas. Me reí e su nombre, de su manera de vestirse, de maquillarse. Recité a voz en cuello fragmentos vergonzosos de su diario de vida únicamente para ponerla en ridículo. Y eso que su diario de vida lo escribía yo.
Que tontería. Cuesta hacer conversar a las personas que llevamos dentro. Pero se puede. Castigamos la acción, castigamos los chistes, castigamos los sueños, castigamos la música, castigamos a los personajes con quienes hemos convivido desde siempre. Y al final comprendemos que no somos películas de misterio, somos misterio.
De todo esto conversé con tu madre esa tarde en el diner. Debería haber sentido antes el minucioso pánico de estar hablando demasiado. Por suerte el mesero nos interrumpió, aparentemente quería saber si estábamos bien. Luego tu madre fue al baño y miró su teléfono y nos interrumpió también el mundo con alguna noticia urgente que no recuerdo pero que alteró ligeramente el guión.
- Te toca - le dije pensando que había olvidado mi pregunta.
- Si sé - me respondió.
Fue entonces cuando tu madre pronunció tu nombre, el nombre que ahora es solo tuyo, pero que habría sido de ella si hubiera sido XY.
- Mis padres estaban tan convencidos de que saldria hombre que ni siquiera pensaro en una lista corta de nombres de mujer - dijo tu madre, como parodiando la pose de una heroína romántica -. Conmigo tuvieron que improvisar, tuvieron que inventarme un nombre a la rápida.
Mientras tu madre le entraba a sus tostadas con canela, yo me concentré en ese nombre que ahora es solo tuyo: en su resonancia, en su belleza. Me gusta tanto pensar que ya nos rondabas en esa cita casi a ciegas. Estoy seguro de que andabas por ahí, agazapado. Postulando a la vida desde el primerísimo flirteo. Dichoso de llenar el formulario.
- Asi podría llamarse un hijo tuyo - le dije a tu madre después de una pausa no sé si muy larga o brevísima -. Y asi podría llamarse un hijo mío.
Esa segunda frase estuvo e más, quizás también la primera. Porque hay códigos, pues. Tu madre me miró como rogándome que dejara de hablar. Y no fue fácil, dije alguna frases más, pro al final conseguí quedarme callado.
- Podemos caminar al metro - dijo ella enseguida.
No era una pregunta ni una invitación, sino un pensamiento en voz alta. Esperamos la cuenta, la pagamos, en in, todas esas acciones sucedieron, pero no recuerdo más que la sensación amarga de haber arruinado una tare espléndida.
- Eres bien intenso - me dijo ya casi al llegar al metro.
No parecía una buena evaluación: dos estrellas de cinco, a lo sumo tres. No supe qué responderle. Siempre tuve este problema crónico del entusiasmo. Eso debí responderle. Pero ella sonreía y me tomó del brazo unos segundos, como apoyandose en mí.
- Me gustaria ser amiga de Jennifer Zambra - me dijo antes de despedirse-. Me late que vamos a ser muy amigas. Más que amigas.
Nos abrazamos, ella bajó al metro muerta de la risa, yo me quedé un rato largo mirando a la multitud. Acababa de oscurecer, el calor amainaba, era una noche perfecta para caminar durante horas. La historia sigue, claro, y se pone cada vez mejor. Después te la cuento bien".


(In. Literatura infantil. Barcelona: Editorial Anagrama). 

terça-feira, 22 de agosto de 2023

Não é um rio - Selva Almada (trecho)

 


"Justo nessa hora um vento se mete pelas árvores, e tudo está tão calado, por conta da hora, que o rumor das folhas cresce como a respiração de um animal enorme. Escute só como respira. Um bufar. Os galhos se mexem como costelas, inflando-se como o ar que se mete pelas entranhas.

Não são apenas árvores. Nem arbustos.

Não são apenas pássaros. Nem insetos.

O jacurutu não é um gato-do-mato, se bem que às vezes, pareça.

Não são uns preás. É este preá.

Esta urutu.

Este caraguatá, único, com seu centro vermelho como o sangue de uma mulher.

Se espicha a vista, descendo a rua, chega a ver o rio. Um brilho que umedece os olhos. E de novo: não é um rio, é este rio. Aguirre passou mais tempo com ele que com qualquer pessoa.

Pois bem.

Quem lhes deu permissão?

Não era uma arraia. Era aquela arraia. Um bicho lindo, toda aberta no barro do fundo, devia estar brilhando branca feito uma noiva na profundidade sem luz. Rente ao limo ou planando com seus tules, magnólia das águas, procurando comida, perseguindo a transparência das lavas, as raízes esqueléticas. Os anzóis enganchados nas asas, os puxões ao longo da tarde inteira, até que se desse por vencida. Os tiros. Arrancada do rio só para ser devolvida depois.

Morta".



(Não é um rio. São Paulo: Todavia, 2021, p. 51-52).


Com Selva Almada, em SP - Agosto/2023.

terça-feira, 18 de abril de 2023

O tempo entretanto corria...... Dino Buzzati

 


"O tempo entretanto corria, cada vez mais precipitadamente a vida com sua batida silenciosa, não se pode parar um segundo sequer, nem mesmo para olhar para trás. "Pare, pare!", se desejaria gritar, mas vê-se que é inútil. Tudo se esvai, os homens, as estações, as nuvens; e não adianta agarrar-se às pedras, resistir no topo de algum escolho, os dedos cansados se abrem, os braços se afrouxam, inertes, acaba-se arrastado pelo rio, que parece lento, mas não para nunca.

Dia após dia Drogo sentia aumentar essa ruína, e em vão tentava estancá-la. Na vida uniforme do forte faltavam-lhe pontos de referência, e as horas lhe fugiam antes que eles conseguisse contá-las.

Havia também  a esperança secreta pela qual Drogo dissipara a melhor parte da vida. Para alimentá-la, sacrificava levianamente meses e meses, e nunca era suficiente. O inverno, o longuíssimo inverno do forte, não foi senão uma espécie de adiamento. Terminado o inverno, Drogo ainda esperava.

"Chegando a boa estação", pensava ele, "os estrangeiros retomarão os trabalhos da estrada". Mas não estava mais disponível a luneta de Simeoni, que permitia vê-los. Todavia, com a sequência dos trabalhos - sabe-se lá quanto ainda seria preciso-, os estrangeiros se aproximariam e um belo dia chegariam ao alcance das velhas lunetas consignadas a alguns corpos de guarda.

Por isso, Drogo deixara de estabelecer o prazo de sua espera na primavera, transferindo-o para alguns meses mais tarde, sempre na hipótese de que a estrada estivesse realmente sendo construída. E devia matutar todos esses pensamentos em segredo, porque Simeoni, com medo de aborrecimentos, não queria mais saber de nada disso, os demais companheiros fariam pouco dele, os superiores desaprovavam fantasias daquele tipo.

(...). Aos poucos a fé se enfraquecia. É difícil acreditar numa coisa quando se está sozinho e não se pode falar com ninguém. Justamente naquela época Drogo deu-se conta de que os homens, ainda que possam se querer bem, permanecem sempre distantes; que, se alguém sofre, a dor é totalmente sua, ninguém mais pode tomar para si uma mínima parte dela; que, se alguém sofre, os outros não vão sofrer por isso, ainda que o amor seja grande, e é isso o que causa a solidão da vida.

A fé começava a se cansar e a impaciência crescia, enquanto Drogo ouvia que as batidas do relógio se tornavam cada vez mais densas".


(In. O deserto dos tártaros. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018, p. 171-172).

sexta-feira, 7 de abril de 2023

O sexo como uma coisa natural e vital - D. H. Lawrence


"É a única coisa que não deixam ninguém ser: direto e honesto quanto ao seu sexo  Na verdade, quanto mais imundo, mais elas gostam. Mas, se acredita no seu sexo e o defende das acusações, elas vão derrubá-lo. É o único tabu insano que resta: o sexo como uma coisa natural e vital. Elas não aceitam isso e preferem matar a pessoa a deixá-la tê-lo. Veja bem, vão atormentar o homem. E o que ele fez, afinal das contas? Se fez amor com a esposa de todas as formas, não é direito seu? Ela devia se orgulhar disso (...). Você tem que se humilhar e se sentir um pecador sobre o sexo para que lhe permitam experimentá-lo. Ah, vão atormentar o pobre diabo".


(In. O amante de lady Chattterley. Rio de Janeiro: Antofágica, 2022, p. 402). 

Uma sensualidade absoluta e fervorosa - D. H. Lawrence


"Como os poetas e todos os outros eram mentirosos! Faziam as pessoas pensarem que queriam sentimentalismo quando na verdade o que se queria era uma sensualidade penetrante, arrebatadora e até um pouco intimidadora. Encontrar um homem que ousava tê-la, sem sentir vergonha ou sem pensar em pecados ou ter qualquer ressalva! Se ele tivesse sentido vergonha depois e a fizesse se sentir da mesma forma, como seria terrível! Que pena que a maioria dos homens são uns cães desprezíveis dominados pela vergonha, como Cliford! Até como Michaelis! Ambos eram sensualmente desprezíveis e vergonhosos, O prazer supremo da mente! E o que era isso, para a mulher? E o que era, na verdade, para o homem também? Ele se tornava simplesmente confuso e desprezível, até na própria mente. Era preciso uma sensualidade absoluta para purificar e acelerar a mente. Uma sensualidade absoluta e fervorosa, não uma confusão.

(In. O amante de lady Chatterley. Rio de Janeiro: Antofágica: 2022, p. 383).

quarta-feira, 1 de março de 2023

Talvez toda essa higiene de não ter esperança seja um pouco ridícula... - Adolfo Bioy Casares

 

No cemitério La Recoleta -  Buenos Aires - visitando o túmulo do Casares - com o meu exemplar de A invenção de Morel - em janeiro/2023

"Agora a mulher de lenço me é imprescindível. Talvez toda essa higiene de não ter esperança seja um pouco ridícula. Não esperar nada da vida, para não arriscá-la; dar-se por morto, para não morrer. Subitamente, tudo isso me pareceu uma letargia espantosa, inquietíssima; quero que termine. Depois da fuga, depois de ter vivido sem fazer caso de um cansaço que me destruía, alcancei a calma; minhas decisões talvez me devolvam àquele passado ou aos juízes; prefiro-os a este longo purgatório".
*
(In. A Invenção de Morel. Adolfo Bioy Casares. São Paulo: CosacNaify, 2006, p. 31).


sábado, 31 de dezembro de 2022

La tendencia a querer comprenderlo todo - Javier Marias


"Supongo que por eso tengo (...) la tendencia a querer comprenderlo todo, cuando se dice y llega a mis oidos, tanto en el trabajo como fora de el, aunque sea a distancia, aunque sea uno de los innumerables mumullos indistinguibles o en susurros imperceptibles, aunque sea mejor que no lo comprenda y lo que se diga no este dicho para que yo lo oiga, o incluso este dicho justamente para que yo no capte. Puedo desconectar, pero solo en ciertos estados de animo irresponsable o bien mediante un gran esfuerzo, y por eso a veces me alegro de que los murmullos sea de veras indistinguibles y los susurros imperceptibles, y de que existan tantas lenguas qu me son extranas y no son deducibles, porque asi descanso. Cuando se y comprueblo que no hay manera, que no puedo entender por mucho que lo desee y intento, entonces mi siento tranquilo y desentendido y descanso. Nada puedo hacer, nada está en mi mano, soy un invalido, y mis oidos descansan, mi cabeza descansa, mi memoria descansa y tambien mi lengua, porque en cambio, cuando comprendo, no puedo evitar traducir automática y mentalmente a mi propia lengua, e incluso muchas veces (por suerte no siempre, acaso sin darme cuenta), si lo que me alcanza es en espanol tambien lo que traduzo con el pensamiento a cualquiera de los otros tres idiomas que hablo y entiendo. A medudo traduzco hasta los gestos, las miradas, y los movimientos, es un sucedáneo y una costumbre, y aun los objectos me parece que dicen algo cuando entran en contacto con esos movimientos, miradas y gestos. Cuando nada puedo hacer, escucho sonidos que son articulados y tienen sentido y sin embargo me resultan indescifrables: no logran individualizarse ni formar unidades. Esa es la maldición mayor de un intérprete en su trabajo, cuando por algun motivo (una dicción imposible, un acento extranniero pesimo, una grave distrración propia) no separa ni selecciona y pierde comba, y todo lo que le parece idéntico, un amsijo o un flujo que tanto do que se imita como que no se emita, pues lo fundamental es individualizar los vocablos, como a las personas si uno quiere tratarlas. Pero también es su mayor consuelo cuando eso sucede y no está en el trabajo: sólo entonces puede relajarce del todo y no prestar atención ni permanecer alerta, y hablar placer en escuchar voces (el insignificante rumor del habla) que no sólo sabe que no lo atanen, sino que además no está capacitado para interpretar, ni para transmitir, ni para memorizar, ni para transcribir, ni para comprender. Ni siquiera para repetirse".



(Javier Marias. In. Corazón tan blanco).

segunda-feira, 23 de agosto de 2021

No tempo da minha memória somos pra sempre - Aline Bei

 


"Em são paulo

o Vento ganhou banho,

levou ponto,

tomou vacina.

e o veterinário disse que foi corajoso

meu ato

sorri sem jeito.


-ele ficou até com cara de menino - eu disse

passando a mão no pelo dele.

-não ficou? mas olha,

foi bom você ter falado nisso.

porque mesmo que não dê pra gente saber qual é a

idade exata dele,

dá pra saber que ele já é bem idoso.


- claro. - respondi.

entendendo que o tempo

sempre leva

as nossas coisas preferidas no mundo

e nos esquece aqui

olhando pra vida

sem elas.


em casa eu disse pro Vento

- Chegamos.


ele me ouviu de lado

batendo o rabo

no vaso

que espatifou no chão.


-deixa pra lá, depois eu limpo.


ele subiu no sofá,

se ajeitou como pode naquilo que, com certeza,

era a melhor cama que ele já teve, os olhos

derramando porto

mais que vinho.


- não me importo - eu disse pra ele - que seja breve o 

nosso encontro.

porque no tempo da minha

memória

somos pra sempre. não existe morrer dentro, é como

uma canção.

as canções não morrem nunca porque elas moram

dentro das pessoas que gostam delas. você conhece

aquela da rua? se

essa rua

se essa rua fosse minha?

eu mandava eu mandava ladrilhar

com pedrinhas com pedrinhas de brilhante

para o meu

para o meu

Vento passar. nessa rua nessa rua tem um bosque. que

se chama que se chama solidão.

dentro dele dentro dele mora um

Vento

que roubou

que roubou meu

coração " - (pp. 111-113).

(In. O peso do pássaro morto. Aline Bei. São Paulo: Editora Nós, 2017).

*

Comentário: Pelo grito nascemos. E na dor vivemos. Mas se tivermos sorte vamos morrendo um pouquinho por vez até chegar o dia em que para definitivamente de doer. Existem situações entretanto que abrem um buraco no eu por onde escorremos até não sobrar nada além de um autômato que espera o fim que venha formalizar a morte. Esta espera é pior que qualquer dor. "O peso do pássaro morto" faz Arte da dor....o tipo de Arte que nos ajuda a não morrer em vida. Que beleza.....


O mapeador de ausências - Mia Couto

 


"Aprendi a ter vergonha desse passado que, sendo dele, também me pertence. É injusto herdar passados, é como se nos amarrassem o tempo aos nossos pés" - (p. 19).
*
"Mas neste mundo de hoje, meu querido neto, ser cego para as raças pode ser uma maneira de não ver o racismo. E eu quero que estejas atento a este mundo cheio de coisas feias, mas também repleto de gente bonita.
Repara, por exemplo, neste nosso empregado, o Juliano, que está muito velhinho. Pedi ao teu pai que não o mandasse embora. E há boas razões para esse meu pedido. Primeiro porque ele próprio não quer ir. Segundo porque este velho preto - que todos dizem ser já de nenhum préstimo - todos os dias me traz uma história. Na verdade, acho que é o único serviço que ele faz aqui em casa. Não imaginas como preciso de escutar essas histórias. Noutro dia falou-me de um amigo seu que morrera fora de Moçambique.
Conto-te agora esse episódio, pensa nele como a prenda que me pediste ontem quando adormecias. A história fala de um velho mineiro que faleceu nas minas da África do Sul. Os seus companheiros optaram pelo mais fácil: enterrá-lo em território estrangeiro, para evitar a chatice de o transladar. Tiraram-lhe as medias, quotizaram-se entre eles e mandaram fabricar um caixão, o mais barato que houvesse. Quando quiseram colocá-lo dentro da urna, o corpo não cabia. Voltaram à funerária para encomendar um caixão de maiores dimensões. Mas voltou a acontecer o mesmo: o corpo sobrava da madeira. Já sem dinheiro, decidiram prescindir da urna. Embrulharam o cadáver num pano branco para o enterrar à pressa. Aconteceu então que o corpo não cabia na cova. Abriram uma cova maior e logo entenderam que de pouco valia aumentar o tamanho da sepultura. Alguém disse: este morto quer voltar para a sua terra. Colocaram o falecido numa carroça, atravessaram a fronteira e conduziram-no para o lugar onde ele nasceu. E ali o morto coube, enfim, na sua própria morte.
Entendes esta história, meu neto? Não é sobre um morto anônimo e distante. É sobre mim, a tua avó Laura Santiago, condenada a morrer numa terra que, depois destes anos todos, continua a ser estranha. Dizem que Moçambique também é Portugal. Li em algum lado que a eficiência da mentira diz mais da ingenuidade do enganado que da arte do mentiroso. Pois arranjem uma história mais bem engendrada. Desejo muito, meu neto, que te mantenhas ingênuo a vida inteira. Mas deves saber escolher as tuas ingenuidades" - (pp.133-134).


  (In. Mia Couto. O mapeador de ausências. São Paulo: Companhia das Letras, 2021 - edição especial TAG).


segunda-feira, 19 de julho de 2021

Natalia Ginzburg & a Psicanálise

 


"En el verano de 1945 comenzó un tratamiento psicoanalitico. "Deberia haberme sentido como una enferma ante un médico. Pero no me se sentia enferma, solo llena de culpas oscuras y de confusión". Durante un par de meses, anotaba todos los dás sus sueños - en un café, a las apuradas, antes de la sesión -, y se sentía como una estudiante. Luego subía, se sentaba frente al analista y hablava con él. "En su mirada nunca se apagaban la ironía y una profunda atención... La luz de su inteligencia me iluminó durante aquel verano negro". Al finalde ese verano decidió regresar a Turín. Extrañaba a sus hijos, quería volver a vivir com ellos". "No me habia liberado de mis neurosis, simplesmente había aprendido a soportalas o, al final, las había olvidado".


(In. Maja Pflug. Natalia Ginzburg: audazmente tímida. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2020).

sexta-feira, 16 de julho de 2021

O amigo - Sigrid Nunez

 


"Durante a década de 1980, na Califórnia, um grande número de mulheres cambojanas foi ao médico com a mesma queixa: elas não podiam enxergar. Eram todas refugiadas de guerra. Antes de fugirem de sua terra natal, elas testemunharam as atrocidades pelas quais o Khmer Vermelho, que estivera no poder de 1975 a 1979, era bem conhecido.  Muitas delas haviam sido estupradas, torturadas ou, sob outros aspectos, brutalizadas. A maioria testemunhara membros da família serem assassinados. Uma mulher, que nunca mais viu o marido e os três filhos depois que os soldados vieram e os levaram, disse que havia perdido a visão após ter chorado todos os dias durante quatro anos. Ela não era a única que parecia ter chorado até ficar cega. Outras sofriam de visão turva ou parcial, os olhos perturbados por sombras e dores. 
Os médicos que examinaram as mulheres - cerca de cento e cinquenta ao todo - descobriram que os olhos delas eram todos normais. Outros testes mostraram que o cérebro delas também era normal. Se as mulheres estivessem dizendo a verdade - e havia quem duvidasse disso, quem achasse que fingiam porque queriam atenção ou esperavam receber algum benefício graças à deficiência -, a única explicação seria cegueira psicossomática.
Em outras palavras, a mente das mulheres, forçada a absorver tanto horror e incapaz de assimilar mais, conseguiu apagar as luzes" - (pp.7-8).
*
"Eu mesmo estou inclinado a concordar com pessoas como Doris Lessing, que achava que a imaginação faz o melhor trabalho em conseguir a verdade. E não engoli essa ideia de que a ficção não é mais uma questão de retratar a realidade. Eu diria que o problema está em outro lugar. E eis outra coisa que notei os alunos: como eles se tornaram hipócritas, como são intolerantes a qualquer fraqueza ou falha no personagem criado por um escritor. E não estou falando sobre racismo e misoginia flagrantes, por exemplo. Estou falando de qualquer pequeno sinal de insensibilidade ou preconceito, qualquer prova de problema psicológico, neurose, narcisismo, obsessividade, maus hábitos.... qualquer excentricidade. Se o escritor não se encaixar no tipo de pessoa que os alunos gostariam de ter como amigo, o que invariavelmente significa alguém progressista e com um estilo de vida saudável, foda-se ele. Uma vez tive uma turma inteira concordando que não importava quão grande fosse o escritor Nabokov, um homem assim - esnobe e pervertido, conforme o viam - não deveria constar da bibliografia obrigatória de ninguém. Um romancista, como qualquer bom cidadão, tem que se sujeitar às regras, e a ideia de que uma pessoa poderia escrever exatamente o que quisesse, independentemente da opinião dos outros, era impensável para eles. É claro que a literatura não pode cumprir seu papel em uma cultura como essa. O fato de a escrita ter se tornado tão politizada me perturba, mas meus alunos estão mais do que bem com isso. Na realidade, alguns deles querem ser escritores precisamente por causa disso. E, se você se opuser a qualquer coisa, se tentar falar com eles sobre, digamos, arte pela arte, eles tapam os ouvidos, eles o acusam de "profexplicar". É por isso que decidi não voltar a lecionar. Sem querer ser auto compassivo demais, mas, quando alguém está tão em desacordo com a cultura e seus temas do momento, de que adianta?" - (pp.190-191).

(In. O amigo. Sigrid Nunez. São Paulo: Editora Instante, 2019).


Mais sobre o livro:


quinta-feira, 15 de julho de 2021

Zazie no metrô - Raymond Queneau

 


"- Então, por que é que você quer ser professora?

- Pra encher o saco das crianças - respondeu Zazie. - As crianças que tiverem a minha idade daqui a dez anos, vinte anos, cinquenta anos, cem anos, mil anos, sempre vai ter crianças para serem aporrinhadas.

(...)

 - Sabia - disse Gabriel, com calma -, segundo os jornais, não é de jeito nenhum nessa direção que caminha a educação moderna. É totalmente o contrário. Vamos na direção da suavidade, da compreensão, da gentileza. Não é isso, Marceline, o que dizem no jornal?

- É - respondeu Marceline, suavemente. - Mas violentaram você na escola, Zazie?

- Queria ver eles tentarem.

- Além disso - disse Gabriel -, daqui a vinte anos não vai mais ter professoras: vão ser trocadas pelo cinema, pela tevê, pelos eletrônicos, essas coisas. Também estava escrito no jornal, outro dia. Não é, Marceline?

- É - respondeu Marceline, suavemente.

Zazie vislumbrou aquele futuro por um instante.

- Então - declarou - vou ser astronauta.

- Isso aí - disse Gabriel, aprovando. - Isso aí, é preciso viver de acordo om os tempos.

- É - continuou Zazie -, vou ser astronauta para encher o saco dos marcianos".

(In. Zazie no metrô. Raymond Queneau. São Paulo: Cosacnaify, 2009, pp. 20-21).