Pesquisar este blog

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Estâncias - Fagundes Varela

O que adoro em ti não são teus olhos
Teus lindos olhos de mistério
Por cujo brilho os homens deixaram
Da Terra inteira o mais soberbo império.
O que adoro em ti não são teus lábios
Onde perpétua juventude mora
E encerram mais perfumes que os vales
Por entre as pompas festivais d´aurora.
O que adoro em ti não é teu rosto
Perante o qual o mármore descorara
E ao contemplar a esplêndida harmonia
Fidias o mestre seu cinzel quebrara.
O que adoro em ti, ouve, é tu´alma
Pura como o sorrir de uma criança
Os carinhos ingênuos de teus olhos
Onde celestes gozos transparecem!...
Um não sei quê de grande, imaculado,
Que faz-me estremecer quando tu falas,
E eleva-me a pensar além dos mundos
Quando abaixando tuas pálpebras te calas.

Imagens: filme "Diário de uma paixão".

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Do visionismo de meu avô

Inda lembro...lá se vão vinte e um, talvez vinte e dois anos. Manhã ensolarada.
Era domingo, pois meu pai mergulhado na poltrona da sala e cercado de papéis por todos os lados, com uma calculadora no colo, refletia sobre complicadas operações de balanço da empresa onde trabalhava, que lhe pagava muito mal, razão de seu sorriso tão melancólico. Isso só vim a compreender anos mais tarde.
Minha mãe...bem, minha mãe não lembro ao certo onde estava.
Eu brincava com uma bola no quintal; chutava de um lado e depois corria, para pegá-la do outro; não me recordo o porquê de estar do lado de fora da casa, pois em geral eu me espalhava com meus lápis pelo chão da sala e coloria revistas infantis; do enorme esforço que fazia para brincar em silêncio, disso eu lembro.
Foi quando meu avô assomou no muro:
- Que fazes sozinha aí?
- Brincando, vô.
- Não parece, pois não estás com cara de feliz.
- Não?
- Quero que vá lá dentro, e avise tua mãe que vou te levar pra minha casa. Vamos passar um tempo lá.
Lembro de ter entrado e dito algo a minha mãe enquanto ela prendia o cabelo num coque (naquele tempo ela tinha cabelos); lembro da resposta ríspida, como quem não ouve ou não dá importância ao que está sendo dito.
Corri para os braços do meu avô;ele me colocou nas costas e me levou para a casa dele, a dois quarteirões dali (era o tempo em que morávamos separados).
Lá chegando, fomos riscar com giz de cera a parede da sala; eu adorava, e continuava, alheia aos protestos de minha avó, a riscar, riscar, riscar....meu avô me acompanhava.
- Deixe a menina ser livre...depois lavamos a parede, como sempre.
- Mas tu não vês que são apenas rabiscos?
- Não diga "apenas". Estamos nos comunicando.
Meu avô, que nunca havia lido Winnicott...
Minha avó, que odiava cozinhar, e cujo mal-humor era uma constante, serviu o almoço.
- Não será melhor avisar que a menina vai comer aqui? Não ficarão preocupados?
- Deixe a menina comer. Em tempo, virão atrás dela.
Enquanto comia, eu olhava intrigada para o meu avô misturando suco de laranja ao de manga. Naquela época, não havia Tangs nem Ades nem seja lá o que for de todos os sabores.
- Por que se contentar com um só, quando podemos experimentar todos? Era o que respondia meu avô a cara de nojo que fazia minha avó. Ele também costumava misturar coca-cola com suco de limão, décadas antes da multinacional comercializar tal produto. Devia ter patenteado a idéia, pois, para mim, aquilo era muito mais significativo que o escorredor de arroz do qual minha mãe falava tão maravilhada...
- Não costumam brincar contigo?
- Não, vovô. Acho que não gostam de mim.
- Bobagem. Eles são muito sérios, apenas isso. Eles tanto te amam que logo se darão conta da tua falta, e virão atrás de você. Aquilo que mais amamos é o que mais nos dá conta da falta...
Meu avô, que nunca havia lido Lacan...
Não sei como dar fim a esse texto...mas também, que mania esta do ser humano de colocar termo ao que não tem fim...talvez possa dizer, contudo, algo do muito que aprendi com meu avô: sentidos da alma, "sempre alertas"; do contrário, não se poderá chamar de vida seja lá o que for que estivermos experimentando...

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

O estruturalismo

O homem adormecido, de Salvador Dali

O estruturalismo foi o ponto de vista epistemológico, cujo apogeu se deu na França nos anos 60, que nortearia as atividades de pesquisa nos campos das ciências humanas e sociais (...). A atividade estruturalista parte da observação de que nada significa por si mesmo, que todo conhecimento num dado sistema é determinado por todos os outros conceitos no mesmo sistema e que só será inequívoco depois de integrado em sua estrutura particular. Além disso, toda significação resulta de uma relação: os fatos são parte de um todo e só em relação a ele podem ser apreciados (Longo, 2006, p.38).

Saussure

Saussure tinha o objetivo de construir uma linguística da língua e não da fala. Era o momento de a fala (ou discurso), cujo senhor é o indivíduo, ser questionada. Emergem as questões relativas ao sujeito que produz o discurso, tornando-se impossível separar a subjetividade do discurso. É justamente a época em que se postula o descentramento do sujeito.
Sob essa perspectiva, o estruturalismo recebe a acolhida da geração que tinha como mestres, entre outros, Marx, Sartre e Freud.
Marx
Com Marx, essa geração aprendeu a conceber o pensamento como um acontecimento que retira da realidade histórica seus motivos e sua força, ou seja, pensar é fornecer estatuto teórico à análise dos movimentos reais da existência para esclarecê-la e transformá-la.
Sartre
Com Sartre, a geração aprendeu que não há mais essência humana preexistente que unifique o curso dos acontecimentos, ou seja, não há mais subjetividade primeira que seja o lugar da verdade, uma vez que a realidade não é o objeto da consciência, mas o lugar de sua emergência e de sua transformação. O existencialismo ateu de Sartre vai justamente promover o homem a articulador de sua própria existência, visto que a essência humana não lhe é dada: ele que a construa segundo os ditames de sua consciência livre.
Freud
Com Freud, emerge a ferída narcísica: a revelação da existência do inconsciente faz cair por terra o sujeito centrado na consciência. Ao contrário, o eu está submetido à força inconsciente que determina o modo de existência da expécie humana. A questão inconsciente refere-se à Outra cena, heterogênea à consciência por sua própria estrutura. O homem se dá conta de que não é capaz de intervir ativamente em seu destino e de que está imerso em sentidosescorregadios. Em outras palavras, está destinado a se abrigar na linguagem (Longo, 2006, p.39-40).
O etnólogo belga Claude Levi-Strauss inaugura a abordagem estruturalistsa na análise antropológica a partir de sua leitura de Saussure, utilizando as categorias e dicotomias que Saussure usa para erigir sua antropologia estrutural (...). Levi-Strauss efetua o descentramento do homem branco, europeu, civilizado, descendente de gregos excepecionais, e faz isso ao desvelar pontos de identificação desse homem com povos "exóticos", com culturas "primitivas", cujos rituais muito se assemelhavam aos dos "civilizados". É o começo de um novo modo de olhar a cultura (...).
Seria também o começo de um novo olhar para a psicanálise por meio dos estudos de Jacques Lacan, em franca ascensão nos anos 60. Em uma volta à letra de Freud, dada a sua insistência sobre a importância da linguagem, Lacan pode fazer uso dos linguistas estruturalistas de sua época e de outras passadas, e afirmar categoricamente que o sujeito é dependente da linguagem. De saída, esse fato dilui a questão da "verdade", visto que a linguagem é criação humana, ficção.


Lacan

O homem, portanto, gira em torno da língua, sem centro, sem purificação de linguagem que a torne transparente à verdade, sem a promessa de redução da polissemia, sem unidade de sentido. A partir do estruturalismo, a linguagem como discurso torna-se o único testemunho objetivo da identidade de um sujeito, cuja única saída é viver no vigor de sua ambiguidade.

(In: Longo, Leila. Linguagem & Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 2006. p.38-41).


sábado, 8 de janeiro de 2011

Freud - a conquista do proibido

"Ora, essas coisas psicanalíticas são compreensíveis se forem relativamente completas e detalhadas, exatamente como a própria análise só funciona se o paciente descer das abstrações substitutivas até os mais ínfimos detalhes. Disso resulta que a discrição é incompatível com uma boa exposição sobre a psicanálise. É preciso ser sem escrúpulos, expor-se, trair-se, comportar-se como o artista que compra tintas com o dinheiro da casa e queima os móveis para que o modelo não sinta frio.  Sem alguma destas ações criminosas, não se pode fazer nada direito".
Mezan apud Freud à Oskar Pfister (2003, p.11).


Como diz um provérbio francês que Freud gostava de citar, para fazer uma omelete é preciso quebrar ovos (Mezan, 2003, p.18).
(...) [Freud] habitou a mesma casa por quarenta e sete anos; teve seis filhos de seu único casamento; (...) não teve casos de amor; tirou férias regularmente durante mais de cinquenta verões; e de modo geral teve uma vida nem mais nem menos sobressaltada do que a de tantos outros burgueses de sua geração (Ibidem, p.27-8).
 Freud & Martha
(...) sempre foi agnóstico, e só se casou no cerimonial religioso porque o casamento civil não era reconhecido pela lei austríaca. Aliás, sua noiva, de família estritamente ortodoxa, recebe desde o início do namoro cartas detalhadas a respeito da questão religiosa: para Freud, estava fora de cogitação curvar-se a rituais que considerava obsoletos e constrangedores. Por outro lado, a leitura precoce da Bíblia deixou nele profundas marcas: identificava-se com José (o intérprete de sonhos) e sobretudo com Moisés, a quem dedicará dois textos fundamentais (O Moisés de Michelangelo e Moisés e o Monoteísmo) (Ibidem, p.34).
(...) a seus olhos, o judaísmo - mesmo abandonado como conjunto de crenças e de práticas - favorecia o espírito científico. (...) A este aspecto soma-se a disponibilidade para se colocar na oposição, isto é, para aceitar com equanimidade sua exclusão da maioria. Independência de julgamento e tenacidade são, pois, as qualidades que Freud atribui à sua origem judaica, e que considera terem sido indispensáveis para a criação de sua disciplina (Ibidem p. 38-9).
(...) Por importante que seja o elemento judaico em sua formação, é impossível deixar de lado a educação ocidental por ele recebida, no ginásio austríaco e na Universidade de Viena.
Esta educação enfatiza dois elementos: a cultura humanística e a ciência, e ambos foram avidamente absorvidos por Freud. Seus escritos são pontilhados de citações da literatura poética, dramática e novelesca, que conhecia bem; entre os autores que admirava, figuram os clássicos gregos e latinos, Shakespeare, Cervantes, Goethe, Heine, Schiller, além de numerosos escritores contemporâneos, como Stefan Zweing, Arthur Schnitzler, Thomas Mann, Henrik Ibsen, Émile Zola e outros. Na obra destes homens, encontrou não apenas um prazer estético, mas ainda inquietações universais, modelos para o seu estilo - de uma clareza e de uma precisão extraordinárias - e, como dirá muitas vezes, a descrição dos processos mais obscuros da alma humana, que, em seu entender, prefiguram muitas das descobertas da psicanálise (Ibidem, p. 48).

O paradoxo da psicanálise é que nela se acede ao universal através do cuidado extremo prestado à natureza singular de cada experiência psicanalítica. Nisto ela se diferencia das ciências da natureza e se assemelha a disciplinas como a história ou a crítica literária: assim como os processos universais da luta de classes ou da criação artística, o complexo de Édipo ou a transferência só existem incarnados em entidades individualmente específicas, nas quais se manifestam de modo sempre singular (...). O inconsciente não é nem "subjetivo" nem "objetivo" no sentido positivista, e sim uma entidade que estilhaça estas divisões estanques e contribui para que a critiquemos e as superemos (Ibidem, p.51-3).

(...) Freud se enganava ao pensar que bastaria comunicar ao paciente o sentido inconsciente de suas palavras para curá-lo de seus sintomas neuróticos; na verdade, esta comunicação tem que ser feita no momento adequado, quando o paciente pode aceitar a interpretação e elaborá-la por si mesmo. o grande problema da técnica psicanalítica é saber discernir este "momento adequado", sem o que a interpretação só aumenta as resistências (Ibidem, p.76-7).
"(...) não se pode distinguir um fato realmente ocorrido de uma ficção investida afetivamente".
Freud à Fliess
A tarefa primordial da civilização consiste em proteger os homens da violência da natureza e da violência inerente às pulsões do inconsciente, que também são, de certo modo, um "fragmento da natureza". Para tanto, ela impõe restrições ao desejo individual e o obriga a tolerar uma certa quantidade de renúncia, posto que a realização simultânea e imediata de todos os desejos conduziria à aniquilação da espécie humana. Em particular, os desejos sexuais e agressivos têm de ser submetidos a controles cuja severidade é variável segundo as civilizações, mas que envolvem uma dose indispensável de repressão, a qual pode atingir níveis alarmantes e engendrar, como no caso da civilização moderna um sofrimento desnecessário que se manifesta como neurose.
Para consolar o homem desta frustração inevitável, a civilização proporciona vias de escape para o desejo, especialmente a religião, a filosofia e a arte, cujo fundamento último é a faantasia, na qual prevalece o princípio do prazer (Ibidem, p.133-4).
E se ele [Freud] caracteriza o trabalho do artista como sendo de natureza a permitir ao destinatário da obra a fruição não culposa de suas próprias fantaisas, conduzindo assim a um levantamento relativo da repressão, tampouco é possível ignorar que o convite do psicanalista à livre-associação envolve promessas que, afinal, não deixam de ter um sentido semelhante...(Ibidem, p.143-4).
Freud & Ana
(...) olhar pelo buraco da fechadura é sempre arriscado - e indiscreto. Mas a indiscrição nem sempre é falta grave: afinal, sem se ser um pouco criminoso, um pouco malandro e um pouco ousado, "não se pode fazer nada direito" (Ibidem, p.152).
(Renato Mezan em "Freud: a conquista do proibido". São Paulo: Ateliê, 2003).

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Mito & Psicanálise - Eros

A complexidade de Eros revela-se de forma pungente quando atentamos para o fato de que ele atravessa vários períodos da produção literária grega, sendo objeto de atenção de diversos tipos de relatos míticos. Eros figura desde a poesia arcaica de Hesíodo; passando pelos poetas líricos (...) pela poesia trágica,com Sófocles; até chegar aos discursos filosóficos de Platão, onde no Simpósio, ou Banquete, o deus é por excelência o objeto do festivo debate de idéias.
Como o quarto na linhagem de deuses primordiais, é tal qual seus antecessores Caos, Terra (Ghéia) e Tártaro, Eros não é gerado por dois seres sexuados, como o serão as demais divindades, especialmente as olímpicas. Eros surge do vazio, de Caos, ou de sua própria potência geradora. Tais divindades geram a partir de si próprias, dando-se elas mesmas à luz. Dessa reflexividade resulta que do um geram-se dois, onde o um é a marca do Todo, de plenitude, de abundância, da ausência da falta e privações, marca que se afasta do universo humano, mas que, ao mesmo tempo, marca uma de suas maiores aspirações ou, em um vocabulário psicanalítico, de suas pulsões. 
Esse Eros primevo em muito difere de outro, mas tarde e mais comumente conhecido como Eros, filho de Afrodite (...). A origem desse segundo Eros dá notícia de divisões, de perdas, de relações que passam pela diferença sexual. Sua mãe, Afrodite, nasce dos testículos do pai, Uranos, atirados ao mar pelo filho Crónos (...). Filha da divisão, da castração, sua missão será atrair, aproximar, uir seres que estão igualmente marcados pela divisão, para que os dois possam gerar um, que é três.
Podemos ver, nessa dualidade de Eros, traços de algo que será muito caro a Freud em sua construção da Psicanálise: a dualidade pulsional. Dada a complexidade da teoria das pulsões, destacaremos aqui apenas alguns aspectos da relação dessa teorização que identificamos no pensamento mítico grego.O primeiro deles nos é dado pelo próprio Freud na conferência XXXII das Novas conferências introdutórias à psicanálise (1933), quando diz que "a teoria das pulsões é nossa mitologia" e que as pulsões "são entidades míticas, magníficas em sua indeterminação". (...) Esse princípio energético, que ocupa a zona fronteiriça entre o somático e o psíquico (...) permanece até o final da obra de Freud sob a ótica de dois princípios basais: o das pulsões sexuais e o das pulsões de destruição. A esses dois princípios Freud vai chamar, respectivamente, de Eros e Tânatos. Remontando ao primeiro Eros, podemos encontrar as principais características que Freud atribuiu à última modalidade de dualismo pulsional. Antes de olharmos mais de perto, vejamos o segundo Eros.

Este, enquanto filho e servidor de Afrodite, partilha da função dela - a de aglutinar a multiplicidade de indivíduos; ou melhor, ele visa a unir os fragmentos dispersos, não de indivíduos (não-divididos), mas de seres divisos, castrados, como fora o pai de Afrodite. As ações do jovem Eros, portanto, pressupõem que haja falta, incompletude, para haver atração, desejo (que, em grego, chama-se também, e não gratuitamente, Eros). Temos essa idéia reiterada no Banquete, de Platão, ao situar a genealogia de Eros como filho de Penia, da Pobreza. O filósofo sublinha uma dimensão do amor que mais tarde, a psicanálise vai ecoar tanto com Freud quanto com Lacan, a dimensão narcísica, na medida em que, na relação amorosa, um busca no outro amado justamente o que lhe falta.

O primeiro Eros, por sua vez, mais do que evocar, parece encarnar uma "nostalgia por uma unidade perdida" (...). Sua autogênese é indicativa desse mo(vi)mento na medida em que nos revela traços que serão mais tarde (c.séc. VI a.C) explicitados pelo Eros órfico: ele é macho e fêmea ao mesmo tempo, com dois pares de olhos que podem olhar em todas as direções, além de muitas cabeças. Sendo Todo, tal Eros busca voltar à completude do Todo, busca a supressão de toda falta ou penúria, o retorno a um estado de satisfação plena. a esse tipo de movimento Freud caracterizou como o retorno ao estado inanimado, como supressão de qualquer nível de tensão ou como estado de Nirvana. E é justamente ele que está na visada da pulsão de morte, de Tânatos (Thánatos, morte em grego), como Freud também vai nomeá-la. (...) Eros é duplo, é aquele que engendra e desfaz, é o "tecelão de mitos", o mythóplokos, que, com sua astúcia, tece redes de sedução, de enganos; como também, em última instância, dá nome a essa outra força primordial que nos leva a buscar Nirvana.
Talvez por isso que Sófocles, em sua Antígona, o tenha descrito como "Eros invencível na batalha...Nenhum dos imortais te pode escapar, nem tampouco os mortais, e aquele que te possui é louco". Na visão trágica de Sófocles, Eros, aquele que ao mesmo tempo repousa "sobre o rosro de uma donzela", "promove a discórdia entre aqueles do mesmo sangue". Sobretudo, como imortal, Eros sobrepõe-se aos próprios imortais, é uma força que nem os não-mortais (os que negam a mortalidade) podem subjugar, aniquilar, matar. Sob a ótica trágica, podemos retomar o dualismo pulsional de Freud não mais em termos de "vida x morte", mas de vidamorte, e ressoar o Freud de Mais além do princípio do prazer. Há aí, fundamentalmente, um movimento pulsional por excelência, que busca a repetição de uma experiência primordial de satisfação. Isto é a primazia da pulsão de morte em sua complexidade dialética. Como encena a trágica figura de Antígon, e a psicanálise mais tarde reafirma, a reedição dessa satisfação total está paradoxalmente fadada ao fracasso, uma vez que seu objeto é desde sempre perdido (...).
O paradoxo, figura por excelência do inconsciente figura uma vez mais no pensamento mítico grego, que Heráclito expressou tão bem no fragmento 51: "Eles não compreendem como o que está em desacordo concorda consigo mesmo: há uma conexão de tensões opostas, como no caso do arco e da lira".
(In: Mito e Psicanálise. Ana Vicentini de Azevedo. Rio de Janeiro: Zahar, 2004. p.27-32).

Nas figuras: Eros, deus do amor, palavra que em grego também define o desejo.
  

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Freud - Criador da Psicanálise

Neste breve relato escrito por Marco A. Coutinho Jorge & Nadiá P. Ferreira, é possível ter contato com a vida de Sigmund Freud - desde o seu nascimento até a morte no exílio -, o contexto histórico e social do surgimento e desenvolvimento da Psicanálise, além dos tópicos essenciais deste saber que marcou a trajetória da humanidade, dentre eles: "os sonhos: via régia para o inconsciente", "a peste e o sexual (onde a prática psicanalítica é distinguida da clínica médica, fala-se de fantasia inconsciente e pulsão), "a clínica da histeria" (onde Freud trata de mulheres com questões sexuais importantes, começando com a hipnose, passando pelo método catártico e culminando na prática da associação livre), e o desenvolvimento da sexualidade (conferindo-se um amplo destaque ao Complexo de Édipo, desde suas raízes mitológicas até as distinções entre meninos e meninas na vivência do complexo).
Ao final, é apresentada uma breve cronologia da vida de Freud e são indicadas leituras para o aprofundamento do tema; apesar de ser um livro de bolso com 61 páginas tratando de um tema tão amplo, não apresenta linguagem rebuscada, e os conceitos não são apresentados de forma superficial, de modo a prejudicar o entendimento da teoria. Excelente leitura para introdução ou revisão de conhecimentos.
A seguir, destaco alguns trechos:
Breve introdução
A vida de Sigmund Freud foi um evento que marcou a história da humanidade. Ele descobriu que o homem é regido por forças que escapam à consciência, algo de que o ser humano tanto se gaba para diferenciar seu gênero de todas as espécies animais e que, no entanto, é apenas a ponta de um imenso iceberg chamado inconsciente.
Assim como Copérnico demonstrou que a Terra não é o centro do universo e Darwin retirou o homem do centro da criação, Freud descentrou a razão: o inconsciente é a Outra Cena que revela que o ser humano não possui domínio de si mesmo. a existência de um pensamento inconsciente, operando continuamente, redimensiona de modo radical o cogito cartesiano: como sustentar que "penso, logo sou", se há algo que pensa em mim e, mais do que isso, trama à minha revelia? Logo, eu não penso, e sim "sou pensado"...
O inconsciente apresenta uma realidade sexual, e a sexualidade, que desde Aristóteles pertencia ao campo da bestialidade, se tornou a partir de Freud não só a pedra angular da constituição da subjetividade, mas também da cultura. Todas as criações humanas, sem exceção - os esportes, as artes, as ciências etc. -, estão ancoradas num desejo sexual indestrutível que constitui o núcleo do inconsciente (Coutinho e Ferreira, 2010, p.7-8).
O nome Freud tem a mesma raiz da palavra freude, que em alemão significa prazer, regozijo, e se origina de Freid, que é o nome da bisavó materna do pai de Freud (...). Em 6 de maio de 1856, nasceu o primogênito, aquele que iria inventar a psicanálise, recebendo o nome de Schlomo Sigismund. O  primeiro nome, Scholomo, dadoem homenagem ao avô paterno, nunca foi usado por Freud. o segundo, Sigismund, foi alterado por ele, que retirou duas letras, passando a assinar Sigmund Freud. Sem dúvida, Freud foi um filho amado pelo pai e o predileto de sua mãe, que o chamou durante toda a vida de "meu Sigi de ouro" (Jorge e Ferreira, 2010, p.13-4).
A clínica psicanalítica desde sempre - ao contrário da clínica médica, que se baseava essencialmente no olhar - retira toda a sua eficácia da escuta de uma fala, na qual a verdade aparece em seu estado nascente. o saber em jogo na experiência da análise é um saber que se caracteriza por estar intimamente associado à verdade do sujeito, não é um saber acadêmico nem doutrinário, mas um saber singular. Esta revelação exige que o analista não só esteja sempre estudando a teoria da psicanálise, mas também que a coloque em suspenso, quando está escutando o seu paciente. Freud sugere que o analista deve tomar cada novo paciente como se fosse o primeiro e escutá-lo em sua radical singularidade. O que isto significa? A singularidade remete para a reconstituição, aqui e agora, da história de um sujeito. Freud recomenda ao psicanalista uma atenção flutuante, isto é, ele não deve a priori privilegiar nada em sua escuta (Jorge e Ferreira, 2010, p.20).

Jacques Lacan, em sua releitura de Freud, sublinhou extensamente essa posição do analista e afirmou, no final da vida, que era de seus analisandos que aprendia tudo, que aprendia o que era a psicanálise (...). A atenção flutuante é o correlato, no analista, da regra fundamental da associação livre, segundo a qual o analisando é convidado a falar tudo o que lhe passa na cabeça, sem exercer o rivo da censura. Lacan interpretou a atenção flutuante como uma ignorância douta, expressão que por seu caráter paradoxal revela a dificuldade inerente à posição do analista no tratamento. Trata-se de uma ignorância que não exclui o saber na teoria, mas que destaca a posição de escuta de um Outro saber, o saber inconsciente, que tem como característica principal a ruptura com toda forma de saber consciente. Em uma análise, tanto o analista, em sua escuta, quanto o analisando, em sua fala, são surpreendidos com a revelação da verdade inerente aosaber inconsciente (Jorge e Ferreira, 2010, p.20-1).
(...) De Cromwell [Oliver Cromwell], Freud citou certa vez uma passagem que considerava como uma verdadeira bússola para a condução das análises de seus pacientes: nós nunca vamos tão longe do que quando não sabemos aonde vamos (Jorge e Ferreira, 2010, p.37).




domingo, 2 de janeiro de 2011

Adorável - Roland Barthes

Adorável: Não conseguindo nomear a especialidade de seu desejo pelo ser amado, o sujeito amoroso acaba chegando a esta palavra meio boba: adorável!
(...) Encontro em minha vida milhares de corpos; desses milhares, posso desejar algumas centenas; mas dessas centenas, amo apenas um. O outro de que estou enamorado me designa a especialidade de meu desejo.
Essa escolha, tão rigorosa que só conserva o Único, constitui, dizem, a diferença entre a transferência analítica e a transferência amorosa; uma é universal, outra é específica. Foram necessários muitos acasos, muitas coincidências surpreendentes (e talvez muitas pesquisas), para que eu encontrasse a Imagem que, entre mil, conviesse a meu desejo. Este é um grande enigma do qual jamais descobrirei a chave: por que desejo Fulano? Por que o desejo duravelmente, langorosamente? Seria acaso todo ele que desejo (uma silhueta, uma forma, um jeito)? Ou seria apenas um pedaço desse corpo? E, nesse caso, o que, nesse corpo amado, tem vocação de fetiche para mim? Que porção, talvez tênue, que acidente? A forma de uma unha, um dente partido um pouco obliquamente, uma mecha, um modo de separar os dedos falando, fumando?
De todas essas dobras do corpo, tenho vontade de dizer que são adoráveis. Adorável quer dizer: isto é o meu desejo, enquanto é unico: "É isso! É exatamente isso (que eu amo)!"(...)
Adorável é o vestígio fútil de um cansaço, que é o cansaço da linguagem. De palavra em palavra, esgoto-me dizendo de modos outros o mesmo de minha Imagem, impropriamente o próprio de meu desejo: viagem ao termo da qual minha última filosofia só pode ser a de reconhecer - e de praticar - a tautologia. É adorável o que é adorável.
Ou ainda: eu te adoro porque você é adorável, eu te amo porque eu te amo. O que fecha assim a linguagem amorosa é exatamente o que a instituiu: a fascinação. Pois descrever a fascinação é a única coisa que jamais, no final das contas, exceder este enunciado: "estou fascinado". Tendo atingido o extremo da linguagem, ali onde ela não pode senão repetir sua última palavra, à semelhança de um disco riscado, embriago-me com sua afirmação: a tautologia não seria aquele estado inaudito, no qual se encontram, misturados todos os valores, o fim glorioso da operação lógica, o obsceno da tolice e a explosão do sim nietzschiano?
"Não é todos os dias que se encontra o que é próprio para dar a vocês a imagem exata do desejo de vocês"
Lacan (Seminário I)


Imagens: Romeu & Julieta

(In: Fragmentos de um discurso amoroso. Sâo Paulo:Martins Fontes, 2010. p.9-13)

sábado, 1 de janeiro de 2011

O Intratável - Roland Barthes

Afirmação: contra tudo e contra todos, o sujeito afirma o amor como valor.
"O Beijo" - Rodin

Apesar das dificuldades de minha história, apesar dos mal-estares, das dúvidas, dos desesperos, apesar dos ímpetos de abandonar tudo, não paro de afirmar em mim mesmo o amor como um valor. Todos os argumentos que os mais diversos sistemas empregam para desmestificar, limitar, esmaecer, em suma, depreciar o amor, escuto-os, mas obstino-me: "Sei disso, mas mesmo assim...". Atribuo as desvalorizações do amor a uma espécie de moral obscurantista, a um realismo-farsa, contra os quais ergo o real do valor: opondo a tudo "o que não vale à pena" no amor a afirmação do que este vale. Esta teimosia é a profissão do amor (...).

Ulisses e Penélope, de "Odisséia".

Há duas afirmações no amor. Inicialmente, quando o amante encontra o outro, há afirmação imediata (psicologicamente: deslumbramento, entusiasmo, exaltação, louca projeção de um futuro pleno: sou devorado pelo desejo, pelo impulso de ser feliz): digo sim a tudo (cegando-me). Em seguida vem um longo túnel: meu primeiro sim é corroído por dúvidas, o valor amoroso é incessantemente ameaçado de depreciação: é o momento da paixão triste, do surgimento do ressentimento e da oblação. Desse túnel, entretanto, posso sair; posso superar, sem liquidar, o que afirmei uma primeira vez, posso novamente afirmar, sem repetir, pois agora, o que afirmo é a afirmação, não sua contingência: afirmo o primeiro encontro na sua diferença, quero seu retorno, não sua repetição. Digo ao outro (antigo ou novo): Recomecemos.

Dr. House & Dra. Cuddy

(In: Fragmentos de um discurso amoroso. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p.15-8).

sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Na calma amorosa de seus braços - Roland Barthes

Abraço: o gesto do abraço amoroso parece realizar, por um instante, para o sujeito, o sonho de união total com o ser amado.
"O abraço", Klimt

Além do acasalamento (aos diabos com o Imaginário), há este outro abraço, que é um enlaçamento imóvel: estamos encantados, enfeitiçados: estamos no sono, sem dormir; estamos na volúpia infantil do adormecer: é o momento das histórias contadas, o momento da voz, que vem me hipnotizar, me siderar, é o retorno à mãe ("na calma amorosa de seus braços", diz uma poesia musicada por Duparc). Nesse incesto renovado, tudo fica então suspenso: o tempo, a lei, o interdito: nada se esgota, nada se quer: todos os desejos são abolidos porque parecem definitivamente satisfeitos.
Contudo, durante esse abraço infantil, o genital acaba irremediavelmente por surgir; ele corta a sensualidade difusa do corpo incestuoso; a lógica do desejo põe-se em marcha, o querer-possuir retorna, o adulto se justapõe à criança. Sou então dois sujeitos ao mesmo tempo: quero a maternidade e a genitalidade. (O amante poderia assim ser definido: uma criança de pau duro: assim era o jovem Eros).

Carrie & Big, em "Sex and the city", o filme

Movimento de afirmação; durante um certo tempo, na verdade acabado, perturbado, alguma coisa deu certo: fiquei saciado (todos os meus desejos abolidos pela plenitude da satisfação): a plenitude existe, e não descansarei até fazê-la voltar: através de todos os meandros da história amorosa, obstinar-me-ei a querer reencontrar, renovar a contradição - a contração - dos dois abraços.
(In: Fragmentos de um discurso amoroso. Sâo Paulo: Martins Fontes, 2010. p7-8).

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

O ausente - Roland Barthes

Ausência: todo episódio de linguagem que encena a ausência do objeto amado - sejam quais forem sua causa e duração - e tende a transformar essa ausência em provação de abandono.
(...) Historicamente, o discurso da ausência é sustentado pela Mulher: a Mulher é sedentária, o Homem é caçador, viajante; a Mulher é fiel (ela espera), o homem é inconstante (ele navega, corre atrás de rabos de saia). É a mulher que dá forma à ausência, elabora-lhe a ficção, pois tem tempo para isso; ela tece e ela canta; as Fiandeiras, as Canções de fiar dizem ao mesmo tempo a imobilidade (pelo ronrom da roca) e a ausência (ao longe, ritmos de viagem, vagas marinhas, cavalgadas). Segue-se que, em todo homem que diz a ausência do outro, o feminino se declara: este homem que espera e sofre com isso é miraculosamente feminizado.Um homem não é feminizado porque é invertido, mas porque está enamorado. (Mito e utopia: a origem pertenceu, o futuro pertencerá aos sujeitos em que o feminino está presente). (...)
Nas fotos: Penélope, personagem de "Odisséia", à espera de Ulisses.

Sustento ao infinito, para o ausente, o discurso da sua ausência; situação em suma inaudita; o outro está ausente como referente, presente como alocutário (...).
Um koan budista diz: "O mestre segura a cabeça do discípulo debaixo da água, durante muito, muito tempo; pouco a pouco as bolhas começam a se rarefazer; no último momento, o mestre tira o discípulo, reanima-o: quando você desejar a verdade como desejou o ar, então saberá o que ela é".
A ausência do outro segura minha cabeça debaixo da água; pouco a pouco, sufoco, meu ar se rarefaz: é por essa asfixia que reconstituo minha "verdade" e preparo o Intratável do amor.
(In: Fragmentos de um discurso amoroso. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 35-41)

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

A origem do mundo - Gustav Courbet (1866)

O quadro "A origem do mundo" foi pintado pelo francês Gustav Courbet em  1866; trata-se de um óleo sobre tela de 46x55 cm, realizado à pedido do diplomata turco otomano Khalil Bey, colecionador de imagens eróticas, que solicitou ao pintor que retratasse o nu feminino da forma mais crua que fosse possível.
Entre a origem do quadro e seus últimos proprietários, a família Lacan, há uma série de controvérsias sobre a trajetória que o quadro seguiu.
Na versão histórica mais corrente, o que se diz é que o diplomata Khalil, arruinado no jogo, tivera que vender toda a sua coleção, e que "A origem do mundo" fora junto, permanecendo escondida atrás de outro quadro de Courbet.
O dono seguinte do quadro teria sido Emile Vial, um cientista e colecionador de arte japonesa, no início do século XX.
Entre 1910 e 1913, um aristocrata e colecionador de arte húngaro, chamado François de Hatvany, adquiriu o quadro e levou para Budapeste; com a Segunda Guerra Mundial, parte de sua coleção foi roubada pelo Exército Vermelho, incluindo o polêmico quadro; quando o conflito se resolveu, o aristocrata conseguiu recuperá-lo.
A obra foi então adquirida em leilão por Sylvia Lacan, esposa do famoso psicanalista, e foi colocada na casa de campo do casal, onde era coberta por um suporte de madeira com uma pintura feita por André Masson, e somente era revelada a visitantes privilegiados; a maioria dos que se deparavam com ela ficavam horrorizados, e o procedimento foi feito para evitar maiores constrangimentos.
Esta era a pintura de Masson que encobria o quadro; parece querer retratar uma floresta no estilo oriental, mas os olhos mais atentos logo perceberão de que se trata apenas de uma releitura da obra de Courbet:
Os críticos de arte costumam dizer que o quadro de Courbet ultrapassa o realismo fotográfico; um fato curioso que reforça tal pontuação é que já se tentou reproduzir a pintura em imagem; solicitou-se que toda sorte de mulheres, de damas a prostitutas, se posicionassem da mesma forma e deixassem fotografar-se, mas o efeito conseguido nunca foi o mesmo, pois nas fotos, sempre insistia um certo ar vulgarizador, um convite ao deleite sexual, o que não acontece na pintura, que cada espectador percebe de uma forma diferente, ainda que quase sempre com horror.
Após a morte de Sylvia, no início dos anos 90, a tela foi doada ao Museu d´Orsay, em Paris, para por fim a uma querela pela disputa da herança entre os herdeiros da família Lacan; atualmente, é a segunda obra mais vista no museu, a julgar pelo tanto de repoduções e postais que são vendidos dela, ficando atrás apenas de um quadro de Renoir, "Le Moulin de la Gallette".
Resta o questionamento: por que o quadro invoca horror? Seria pela sensualidade? Creio que não, pois o sexo da mulher fora retratado de forma crua, como o primeiro dono do quadro desejava. Talvez o horror seja invocado pela pintura invocar o que no homem é vivido como ameaça, e na mulher como constatação: a castração, aquilo que está para sempre perdido, o gozo pleno, impossível. Não por acaso percebo que sempre são as ditas "mulheres fálicas" e os "homens que se dizem mais poderosos, completos e viris" os que mais se horrorizam ao contemplar o quadro; estaria este em verdade denunciando a falácia de quem se acredita um sujeito completo?
Para melhor compreender os questionamentos acerca da sexualidade que o quadro invoca, e a necessidade do feminino estar coberto por um véu, uma excelente leitura é o artigo de Maria Cristina Poli, disponível na Revista Ágora de Psicanálise:
Uma leitura do que a arte traz do Real, especialmente o quadro de Courbet, também pode ser conferida no livro no livro "As partes da maçã: visões prismáticas do real", de Maria Antonieta Jordão Borba, cujo capítulo esta disponível no Google livros:
O difícil confronto com o estatuto de sujeito castrado e com a vivência da feminilidade é um tema que merece um aprofundamento bem maior que ultrapassa em muito os limites deste breve ensaio.

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Rol do cotidiano - by me

Fragmentos do dia-a-dia engrossam a minha angústia intrínseca ao estatuto de sujeito condenado pela linguagem...
Estava eu à fila para o almoço, segurando o que um dia fora um gélido bandejão de inox, e que fora substituído por uma bandeja preta com branco prato de louça, por ocasião das festividades de encerramento do ano.
Aguardava os outros se servirem da mistura arroz-feijão, cada qual com a sua idiossincrasia, como diria meu amigo Claiton. Uns erguiam uma pilha alta de arroz em meio ao mar de feijão, à moda de outros homens que um dia ergueram a famosa estátua da ilha de Manhatam; outros forravam seus pratoss com fartas colheradas de arroz e apenas finalizavam com uma quase "pitada" de feijão, bem ao centro, como se estivessem confeitando um bolo com cereja - e quisessem mais fazer do feijão alegoria do que sentir o seu gosto; outros ainda, dispunham arroz e feijão em porções meticulosamente iguais, para que se confrontassem mas não se ultrapassassem - como se quisessem brincar de Deus e pudessem recriar na floresta de seus pratos o encontro do rio Negro e do Solimões.
Depois viria a carne...
A carne, pode-se optar entre duas; em geral, a primeira é uma das grandes "pop stars" do refeitório (bife à parmegiana, frango assado, filé) e a segunda consiste em algo que poucos ousam gostar, tal como bossa-nova (tirinhas de fígado com pimentão, picadinho de carne com abóbora, dentre outras). Poder-se-ia dizer que se trata de uma atividade tão complexa quanto a de sintonizar uma rádio, salvo que aqui você não pode aumentar o volume, pois é a copeira que, com o olhar de uma alemã em Auschewitz, despeja a quantia que bem quer em nossos pratos.
Chegada a minha vez, escolhi fígado com pimentão, pois sou uma pessoa cult, e não saio por aí ouvindo, ou melhor dizendo, comendo..."qualquer-coisa".
Dali fui para a fila do suco, e é nela que se deu o grande evento...
O suco é armazenado em uma máquina, dessas em que encostamos o copo descartável e ela despeja o conteúdo, tal como as máquinas de fast-food...
Fulano cochicha para ciclano:
- Vou logo é encher dois copos, para não ter que levantar pra pegar mais quando o suco acabar!
Beltrano, que atrás deles, ouvia atento, replicou:
- Que boa idéia! Vou fazer isso também!
E o procedimento se espalhou pelo resto da fila, tal como os presentes fossem peças de dominó enfileiradas, e alguém tivesse lançado o dedo.
Diante de tal disparate, fui assaltada por diversas inquietações: mas e o meio ambiente, o plástico que demora não sei quanto tempo para degradar, e todas aquelas veias e artérias congestionadas dos corpos inertes?
Por fim minha consciência ordenou que a alma calasse, sob pena de entregá-la à loucura.
Aquilo era café pequeno, eu que ficasse feliz com as alegrias que o dia ainda me reservava...
Mas naquela tarde um jovem que ocupava o assento preferencial  fingiu dormir quando o metrô parou na estação Paraíso e uma senhora assomou à porta; e um homem não quis correr para alcançar a mulher que, exausta, deixara escorrer o troco da passagem entre os dedos - preferiu ele guardar o dinheiro no bolso, e não o fez sem que brotasse um sorriso no canto de seus lábios.
fotos de Lee Miller

Saramago - Biografia

Escrita pelo português João Marques Lopes, que atualmente desenvolve doutorado na área de Literatura brasileira da Universidade de Lisboa, esta é a mais recente biografia de Saramago que vem a público após a morte do escritor, e que teve grande destaque na Bienal do Livro ocorrida este ano em São Paulo.
Apesar da narrativa abusar de termos acadêmicos, o que não compromete a compreensão e fruição do texto, ela acrescenta poucas novidades ao que já fora amplarmente divulgado pelas mídias sobre a vida do prêmio Nobel de Literatura; foi dada demasiada ênfase ao envolvimento do escritor com questões políticas  em detrimento de suas outras facetas, como criador e mesmo como homem.
Creio que quem deseja ter um maior contato com a vida e a obra de Saramago fará melhor lendo aos "Cadernos de Lanzarote",  nos quais é o próprio escritor que narra as suas aventuras e desventuras,  acrescidas da sua aguda sensibilidade perceptória,  imensurável bagagem cultural e emotividade.
Entrementes, a biografia de João é válida para quem deseja tomar um primeiro contato com Saramago, por trazer à baila um apanhado geral sobre a vida e as obras do escritor.
A seguir, destaco alguns pontos interessantes do livro.
As origens de Saramago são humildes; seus avós maternos foram camponeses analfabetos, criadores de porcos (o avô fora injeitado quando pequeno e colocado na roda da Misericórdia). Nos vinte e um anos em que viveu com os pais, Saramago mudou-se dez vezes, pois vivia em casas de aluguel, e sempre que este aumentava, a famíla tinha que se deslocar para locais mais "acessíveis". Num desses locais, o sexto andar de um prédio velho na periferia de Lisboa,  a família tinha que roubar água; neste lugar havia apenas dois livros, que lá jaziam por terem sido abandonados por outros inquilinos:  tratava-se de um guia de conversação português-francês, e da "Toutinegra do Moinho," de Émile de Richebourg; durante muito tempo estes foram os únicos livros com os quais Saramago teve contato.
As origens humildes ficará marcada num episódio curioso envolvendo o nome do escritor. O pai, batizado como José de Sousa, fora registrar o menino em cartório, revelando ao escrevente que desejava que o filho tivesse o mesmo nome . Tudo feito, deixara o cartório e só alguns anos depois, ao acessar a certidão para matricular o menino na escola, descobriu que o escrevente adicionara arbitrariamente ao José de Sousa o sobrenome Saramago. O pai ficou arrasado, pois Saramago se tratava de um nome jocoso, que aludia a uma espécie de erva ruim, dessas que crescem espontanemente, o que denunciava como a família era denegrida entre os vizinhos da aldeia onde moravam.

Ainda que a mãe de Saramago fosse analfabeta, ela fez questão que o filho estudasse, sendo que a sua formação básica se deu numa escola de excelente qualidade, o Liceu Gil Vicente; nesta escola é que o menino terá o primeiro contato com as artes e literatura, pelas quais desenvolverá intenso interesse; certa feita, quando Saramago ficou doente e acamado, ainda menino, a mãe percorreu toda a vizinhança implorando que lhe emprestassem livros, para levá-los ao filho e assim agradá-lo, de forma a apressar seu restabelecimento.
Impossibilitado de prosseguir os estudos no Liceu por conta das dificuldades econômicas, Saramago seguiu os estudos secundários na Escola Industrial de Afonso Domingues, como serralheiro mecânico; ele jamais cursou o ensino superior.
Sua vida profissional evoluiu do ofício como serralheiro mecânico para empregos administrativos; apesar das adversidades, Saramago nunca se manteve longe dos livros, frequentando a bilbioteca assiduamente; por este hábito é que adquiriu uma incomensurável bagagem cultural e o gosto por escrever. No entanto, seu primeiro livro só seria publicado quando o escritor já contava com 53 anos. 

O encontro com Pilar del Rio

José Saramago já fora casado com Ilka Reis, com quem compartilhou trinta anos de convivência e tivera sua única filha, Violante; depois mantera um relacionamento de quase dez anos com Isabel de Nóbrega; mas foi com Pilar del Rio que, segundo ele, encontrou a verdadeira felicidade.
É Pilar que em entrevista a Juan Airas revelou como se deu o encontro. A jornalista espanhola por acaso entrou numa livraria com as amigas e encontrou um livro de Saramago, "Memorial do convento"; leu-o avidamente e lhe interessou especialmente a o destaque que Saramago conferia às mulheres na narrativa, pois Pilar sempre fora uma defensora ferrenha dos direitos femininos.
Pilar retornou à livraria e comprou outro romance, desta vez "O ano da morte de Ricardo Reis", que se tratava de uma história fictícia criada em torno de um dos heterônimos de Fernando Pessoa.
Segue trecho da biografia que narra o que se deu a partir de então. Diz Pilar:
"Acabei de ler o livro e chorar compulsivamente porque estava a terminar e perguntava-me: que vou fazer o resto da minha vida se o livro está a acabar? Então decidi ir percorrer os lugares de Lisboa que aparecem no romance e pareceu-me de justiça telefonar ao escritor para lhe agradecer o livro e a emoção que me tinha oferecido - assim Pilar define o início do contato com Saramago. Entretanto, mesmoantes de conhecê-lo pessoalmente, faria um programa de televisão sobre ele, e a visita a Lisboa aconteceria em junho de 1986. Consegue marcar um encontro com Saramago, que a leva ao túmulo de Pessoa no Cemitério dos Prazeres, a outros lugares do roteiro pessoano, e leem ambos fragmentos da obra. Daí nasceriam uma amizade e uma troca de correspondência baseadas em literatura, com ela e lhe enviar resenhas da imprensa espanhola a respeito dos livros dele e Saramago a lhe recomendar leituras de escritores portugueses. A relação epistolar começaria a evoluir para algo mais profundo quando, na quinta carta que enviava, o escritor lhe pergunta se haveria algum incoveniente em uma visita sua a Servilha. Após outras visitas, a relação sedimenta-se, e Pilar se mudará para Lisboa, onde se casará com o escritor em 29 de outubro de 1988. Ela tinha 37 anos e ele, 66" (Lopes, 2010, p114-5).
Os dois viveram juntos até a morte do escritor, ocorrida em junho deste ano. Todos os livros que Saramago escreveu depois de conhecer Pilar foram dedicados a ela.
A história de amor do casal é narrada em meio ao processo de concepção do livro "A viagem do elefante" no belíssimo filme "José e Pilar", em cartaz nos cinemas de SP.
Encerro este breve ensaio com uma citação de Saramago:
"Nada me causa mais desagrado do que ouvir um político dizer que não há que causar alarme social. A sociedade tem de estar alarmada, é a sua forma de estar viva".
Vale à pena conferir os blogs oficiais do escritor, que contêm documentos, fotos e resenhas originais:

A Maior Flor do Mundo | José Saramago