“Alta agonia é ser, difícil prova” é o primeiro verso de um soneto
meu, escrito aos 23 anos — um soneto muito importante para mim,
pois é uma espécie de programa de vida, que não renego nunca e
nem jamais conseguirei cumprir, porém é minha tarefa tentar. Difícil
prova, sim, impossível, pois isso constitui propriamente o humano. E,
claro, todas as ferramentas servem, principalmente, à religião (sobre o
aspecto místico), à poesia — intuições básicas e... musicais, que tive de
nascença — e, a bem mais recente, à filosofia. Deixando a religião de
lado (mas fica lá, por baixo), falemos só de poesia e filosofia.
Arcaica como o verbo é a poesia, velha como o cântico. A poesia,
como o mito, também pensa e interpreta o ser, só que não é pensamento puro, lúcido. Acolhe o irracional, o sonho, inventa e inaugura os campos do real, canta. Pode ser lúcida, se pode pensar — é
um logos — mas não se restringe a isso. Não importa: poesia não
é loucura nem ficção, mas sim um instrumento altamente válido
para apreender o real — ou pelo menos meu ideal de poesia é isso.
Depois é que surgem o esforço para a objetividade e a lucidez, a filosofia. Fruto da maturidade humana, emerge lentamente da poesia e
do mito, e inda guarda as marcas de co-nascença, as pegadas vitais da
intuição poética. Pois ninguém chegou a ser cem por cento lúcido
e objetivo, nunca. Seria inumano, seria loucura e esterilidade. Bem,
aí já temos uma diferença básica entre poesia e filosofia — a idade, a
técnica, não o escopo. Pois a finalidade de entender o real é sempre
a mesma, é “alta agonia” e “difícil prova” que devemos tentar para
realizar nossa humanidade. Isso é o que temos a dizer, inicialmente,
sobre a filosofia e poesia.
Bem, fazer poesia fiz sempre, e curiosa sempre fui. “Que bicho é
esse?” era minha pergunta de aluninha. “Ti esti”, “que é”, pergunta o
filósofo. É pergunta igual... Aos dezesseis anos fiz os seguintes versos:
Pensar dói
e não adianta nada.
Maus versos, mas intuição válida. Pensar dói mesmo, faz cócegas,
pode ser tão irreprimível como a curiosidade da aluninha. E de que
adianta? Bem, o caso é que eu não engolia, nem engulo, respostas já
prontas, quero ir lá eu mesma, tentar. Tentava pela poesia. Ora, uma
intuição básica de minha poesia é o “estar aqui” — autodescoberta e
descoberta de tudo, problematizando tudo ao mesmo tempo. Só que
este “estar aqui” é, também, estar “a um passo” — de meu espírito,
do pássaro, de Deus — e este um passo é o “impossível” com que
luto. É o paradoxo que exprimo num poemeto.
Próxima: mas ainda
estrela
muito mais estrela
que próxima.
Ora, esta posição existencial básica de meus poemas já é filosófica, isto é, seria possível desenvolvê-la em filosofia, e daí veio meu
interesse pela filosofia propriamente dita. Eu vivia a intuição quase
inefável de estar só “a um passo”, que bastava erguer um só véu.
Mocidade! E aí entra na minha vida a filosofia explícita. Entrou em
aulas da Escola Normal, entrou pelos livros que procurei conseguir
(Pascal, Gilson, Maritain, e até alguns não tão ortodoxos), e misturou-se a um interesse pela mística — Huxley, Sta. Tereza, São João
da Cruz. Salada de que resultou meu livro “Transposição”, muito
“abstrato” e “pensado” — no sentido poético de tais termos. Girava em torno do problema do ser e da lucidez, e abusava do termo
“luz”. Um livro estranho, que só recentemente percebi como estava
na contramão da poesia brasileira, sensual e sentimental. Parecia até
meio cabralino devido a um vezo analítico, mas nunca foi, claro. Era
um livro escrito no interior, tramado pelas tendências já levantadas,
e onde já poesia e filosofia tentavam se irmanar, como possível.
Não preciso explicar, agora, porque meu interesse por filosofia era
quase inato, como a poesia. Assim, agarrei a oportunidade de fazer
realmente filosofia. Talvez desse em algo prático (não deu), mas o
que me interessava era, acreditem ou não, a Verdade. Ingenuidade?
Hoje sei que era, mas era a própria ingenuidade nobre sem a qual
não se cria. E lá parti eu para tentar a filosofia, continuando com a
poesia naturalmente. E o curioso é que estas águas não se mesclaram
mais do que já estavam, senão a poesia poderia se tornar seca e não espontânea. Mas dei sorte (!) de não me tornar filósofa... Aliás, o
mais que conseguiria seria ser uma professora de filosofia, isto é, uma
técnica no assunto — e, bom, não era essa a finalidade. Nem dava;
faltava base econômica e cultural. Pobre e vindo apenas do Normal
só consegui terminar o curso. Mas me diverti muito.
Não, concluí, a filosofia propriamente dita não é exatamente meu
caminho, aliás nem mesmo me considero intelectual, só poeta, e
ponto. Melhor criar que comentar, claro. A filosofia não me deu
a resposta, a poesia só dá intuições, a estrela próxima está cada vez
mais longe, mas continue-se a escrever...
Se fiquei insatisfeita com a filosofia explícita, isso não significa
que foi inútil. Deu uma base cultural que eu não tinha, alargou meu
mundo. E me deu o “status” de “filósofa”, universitária. É mais ou
menos mito, mas mitos são excelentes para promover livros.
A poesia foi indo, como deu. Preocupou-se com a forma, a técnica
— Helianto, do tempo da faculdade — e chegou à meta-poesia —
Alba. Depois tentei voltar, tornar o papo mais concreto — Rosácea,
Teia. Mais próxima do cotidiano, mais sofrida, é como ela está, e eu
também. Consequências da pobreza, do envelhecimento, das mágoas.
Lamento ter perdido a passada ingenuidade (e imunidade) mas não
que mudei de pele, não é possível. O futuro é propriamente falando o
imprevisível — e não sei onde a pesquisa poética e o pensamento selvagem me levarão. E inda acrescentei à minha salada o zen-budismo
— com bons resultados, aliás — e agora procuro outros “ingredientes”, se possível. Não estar satisfeita é bem humano.
O soneto a que me referi no princípio fala em
despir os sortilégios, brumas, mitos.
e taí uma tarefa bem filosófica, se a filosofia fosse só consciência
crítica e lucidez, se não alimentasse também brumas e mitos próprios. Sem o que estaríamos tão nus que morreríamos, ou quem sabe
— transmutávamo-nos —. Persigo a
aguda trama
da meta
morfose,
e, para isso, poesia, filosofia, zen e o mais que vier, tudo serve —
ruma ao não-dito, ao nunca dito, ao inexprimível.
Noutro poema, digo
Amor
cegueira exata.
e, entendendo-se “amor” como a energia criativa primordial, então o saber poético se dá como uma “cegueira exata”: intuição, pensamento selvagem. A poesia, claro, não apresenta provas: isto é tarefa
para a filosofia. Mas os filósofos — os criativos mesmo — também
partem de intuições, e é a poesia que dá o que pensar. Que dizer
dos incitantes fragmentos de Heráclito? Mistério religioso? Filosofia?
Poesia? Tudo junto! E de Platão, aliás também poeta? E de Heidegger — que confesso ter lido como poesia — que, afinal, acaba
no poético, por tentar algo indizível? Há muita poesia na filosofia,
sim. Não poesia didática — como a dos pré-socráticos — mas poesia
como fonte que incita e embriaga. E da filosofia na poesia já falamos,
só que é “filosofia” que se ignora, que canta — que dá nervo aos
poemas e tenta entrar onde o raciocínio não chega.
Filósofos podem servir de exemplo aos poeta, como digo
Sócrates
fiel ao seu daimon.
pois, como os poetas, Sócrates era inspirado — e era fiel a sua inspiração. Só isso cabe ao poeta: ser fiel à voz interior, sem forçar, sem
filosofar explicitamente. Deixar que, naturalmente, filosofia e poesia
se interpenetrem, convivam, colaborem.
Nasceram juntas, sob a forma de mito, e juntas sempre, sempre
colaboram para criar e renovar a nossa própria humanidade".
(In. Poesia (e) Filosofia. Por poetas-filósofos em atuação no Brasil. Pucheu, Alberto (org). Belo Horizonte: Moinhos, 2019 , p. 11- 14).