"Em são paulo
o Vento ganhou banho,
levou ponto,
tomou vacina.
e o veterinário disse que foi corajoso
meu ato
sorri sem jeito.
-ele ficou até com cara de menino - eu disse
passando a mão no pelo dele.
-não ficou? mas olha,
foi bom você ter falado nisso.
porque mesmo que não dê pra gente saber qual é a
idade exata dele,
dá pra saber que ele já é bem idoso.
- claro. - respondi.
entendendo que o tempo
sempre leva
as nossas coisas preferidas no mundo
e nos esquece aqui
olhando pra vida
sem elas.
em casa eu disse pro Vento
- Chegamos.
ele me ouviu de lado
batendo o rabo
no vaso
que espatifou no chão.
-deixa pra lá, depois eu limpo.
ele subiu no sofá,
se ajeitou como pode naquilo que, com certeza,
era a melhor cama que ele já teve, os olhos
derramando porto
mais que vinho.
- não me importo - eu disse pra ele - que seja breve o
nosso encontro.
porque no tempo da minha
memória
somos pra sempre. não existe morrer dentro, é como
uma canção.
as canções não morrem nunca porque elas moram
dentro das pessoas que gostam delas. você conhece
aquela da rua? se
essa rua
se essa rua fosse minha?
eu mandava eu mandava ladrilhar
com pedrinhas com pedrinhas de brilhante
para o meu
para o meu
Vento passar. nessa rua nessa rua tem um bosque. que
se chama que se chama solidão.
dentro dele dentro dele mora um
Vento
que roubou
que roubou meu
coração " - (pp. 111-113).
(In. O peso do pássaro morto. Aline Bei. São Paulo: Editora Nós, 2017).
Comentário: Pelo grito nascemos. E na dor vivemos. Mas se tivermos sorte vamos morrendo um pouquinho por vez até chegar o dia em que para definitivamente de doer. Existem situações entretanto que abrem um buraco no eu por onde escorremos até não sobrar nada além de um autômato que espera o fim que venha formalizar a morte. Esta espera é pior que qualquer dor. "O peso do pássaro morto" faz Arte da dor....o tipo de Arte que nos ajuda a não morrer em vida. Que beleza.....